Paterson (2016)


Paterson, real. Jim Jarmusch. Alemanha/EUA/França, 2016. DCP, cor, 118 min.

Jim Jarmusch é um nome incontornável do cinema independente produzido nos EUA. Desde os primeiros filmes que dirigiu, como Para Além do Paraíso (Stranger Than Paradise, 1984) ou Vencidos pela Lei (Down by Law, 1986), que as suas obras se centram em personagens forasteiras e marginais, criando uma visão alternativa da realidade social do seu país. Mesmo um filme de vampiros como Só os Amantes Sobrevivem (Only Lovers Left Alive, 2013) inscreve a sua dimensão fantástica, com um romantismo associado à tensão entre a eternidade e a decadência, sobretudo nas paisagens urbanas arruinadas de Detroit. Paterson, o mais recente filme escrito e realizado por Jarmusch, pertence à mesma linhagem. Paterson é o nome da personagem principal, um motorista de autocarros da empresa estatal de transportes públicos NJ Transit. Mas Paterson é também o nome da cidade que ele habita no estado de Nova Jérsia. Esta conjugação de um elemento ficcional com um elemento factual através da coincidência verbal chama a atenção para as palavras, para o que elas nomeiam, para a sua ligação à vida. A existência de Paterson, a personagem e a cidade, torna-se num poema em potência, serenamente fervilhante, à espera que alguém o escreva. Eis um exemplo. Depois de o autocarro guiado por Paterson parar devido a uma falha eléctrica, várias pessoas com quem ele se cruza lhe perguntam se o veículo não se podia transformar numa “bola de fogo”. A mesma expressão na boca de várias personagens cria mais uma rima interna em que este filme é pródigo, como que desvendando uma sensibilidade partilhada, um modo de ver idêntico. Neste sítio não são só os motoristas que são poetas. Às tantas, Paterson encontra uma miúda que escreve poemas num caderno, tal como ele. O poema que ela lhe lê, sobre a água que cai, foi escrito pelo realizador. A poesia é um ofício comum ao alcance de todos. Segundo Jarmusch, a inspiração para o filme veio em grande parte de um longo poema de William Carlos Williams, um médico, com o título “Paterson” e a extensão de cinco livros. Foi nele que o cineasta encontrou a ideia de que a precisão das imagens poéticas nasce das coisas que vamos conhecendo. Os poemas atribuídos a Paterson foram escritos pelo poeta Ron Padgett com um estilo que se aproxima do de Williams. A mesma afinidade é notória numa cena em que Paterson lê um poema de Williams à sua companheira, Laura. Laura é interpretada pela actriz iraniana Golshifteh Farahani. A cidade de Paterson é conhecida pela diversidade étnica e cultural da sua população e o filme representa essa realidade. O bar que Paterson visita à noite é um espaço de convívio entre gentes diversas, para além de ser o palco de amores não correspondidos e discussões conjugais. Sobressai uma riqueza que vem da coexistência de estórias, de personalidades, de formas de expressão. Num dos seus passeios nocturnos, Paterson encontra um negro (o rapper Method Man) numa lavandaria a ensaiar um rap. Escuta-o com a mesma disponibilidade com que escuta os outros poemas e, finalmente, encoraja-o. A atenção de Paterson aos detalhes é reflectida naquilo que escreve. Ele olha atentamente, mas também ouve atentamente as conversas dos adolescentes anarquistas e dos homens solitários nas carreiras do autocarro. O tempo corre. As imagens escorrem. Apenas as palavras podem resgatar as coisas significantes. A poesia reconfigura o mundo e molda o filme a nível sonoro e visual. Ouvimos os poemas, mas também os lemos no ecrã. As palavras são inscritas sobre os planos, como imagens sobre imagens. As páginas em branco do caderno que um estranho, um japonês, afinal tão próximo, oferece a Paterson na conclusão tem um sentido de abertura, mostrando o que está por escrever, revelando as inúmeras possibilidades em aberto. Adam Driver interpreta Paterson como um homem recolhido e exacto de gestos parcos e dizeres raros. Laura respeita que ele não queira um telemóvel (embora ele acabe por pedir um emprestado quando o autocarro avaria), mas insiste que a sua poesia devia ser publicada e conhecida (apesar de ele se satisfazer em guardar o que escreve no caderno). Ela é expansiva, tem uma criatividade irrequieta, sempre à procura de novas oportunidades para a concretizar, na música, na pintura, no design, na culinária. Enquanto ele encerra a sua arte num caderno, ela transforma a casa deles numa obra de arte, pintando o chão, os cortinados, as paredes, o mobiliário. A poesia nasce na rua, mas precisa de lugares e momentos de pausa e contemplação para se fixar. Não se trata apenas da poesia do quotidiano. Trata-se da poesia no quotidiano — a ideia de que a criação e apreciação artísticas não são dimensões paralelas ao dia-a-dia, um acrescento ou um refúgio. As personagens de Paterson estão aparentemente presas na circularidade das semanas. No fim, a segunda-feira volta a aparecer, como no início. Tal como, todos os dias, Paterson endireita a caixa do correio que o seu cão insiste em inclinar, talvez como simples brincadeira, talvez para que acompanhe a inclinação da rua. Mas o tempo é uma vivência. O círculo é feito de uma linha e esta encerra perguntas, possibilidades que ocupam a mente à medida que se vencem os dias, muitas vezes a partir de memórias daquilo que fez de nós aquilo que somos. É isso que o último poema do filme, “The Line” (“A Linha”), sintetiza. [20.07.2017]