Colo (2017)


Colo, real. Teresa Villaverde. França/Portugal, 2017. DCP, cor, 136 min.

Talvez alguém pense que Colo chega fora de tempo. Como se já não pertencesse a uma série de filmes sobre o tempo de austeridade e o período da vigência da troika em Portugal que inclui o tríptico As Mil e Uma Noites (2015), São Jorge (2016), e A Fábrica de Nada (2017) — todos muito diferentes no seu projecto artístico, por muitas semelhanças temáticas que se descubra neles. Podemos dizer que o tempo de Colo é ainda o de hoje. Não só porque esses tempos não terminaram, tendo em conta que a crise é um estado permanente, mais ou menos intenso, da sociedade capitalista. Mas, sobretudo, porque é um filme que se abre para outros tempos, potencialmente todos os tempos, pela sua densidade humana e riqueza estética. O título é uma palavra portuguesa sem tradução. Expressa um espaço côncavo formado pelo corpo ou a parte desse corpo que une o tronco à cabeça. Também é de espaços formados pelos corpos, de convivência ou repouso, que o filme trata. Assim como de corpos que se desmembram para formar outros, como as famílias. A família — a sua desagregação, a sua recomposição, a sua ausência, a sua procura — tem sido o grande tema do cinema de Teresa Villaverde, de A Idade Maior (1991) a Cisne (2011). O que distingue Colo é ser um filme de espectros e sombras, desencontros e cruzamentos. Um retrato das ramificações de uma crise interpessoal, não apenas económica, em Portugal a partir de uma família de três, no qual a solidão e a compaixão aparecem com a mesma turbulenta serenidade. Sobressaem, em particular, muitos exemplos de grande cuidado, cuja imagem inicial é a de Marta (Alice Albergaria Borges), a filha, a cuidar do seu pequeno pássaro num quarto com paredes cor de terra, em rima antecipada com o bebé que uma amiga espera. Esse cuidado é, por vezes, uma tentativa de salvar algo quando tudo se desfaz ao redor. Começa com uma separação dramática entre uma lacrimejante Marta e o namorado dela, João (Tomás Gomes). A câmara cola-se aos rostos num momento que faz a ponte com a vigorosa energia emotiva dos filmes anteriores. Colo segue depois outra via, tendencialmente centrífuga, insistindo em distanciar-se das personagem, não para delas se afastar, mas para que o mundo onde vivem ganhe mais peso nos enquadramentos. A incomunicabilidade e a invisibilidade emergem como traços de uma coexistência que a morte ronda, instante a instante. A escuridão espalha-se sem contaminar ou inviabilizar completamente a vida. A direcção de fotografia de Acácio de Almeida, histórico do cinema português desde O Cerco (1970), trabalha por vezes com uma luz escassa, mínima, acentuando as zonas de sombra ou negrume, mesmo nas cenas diurnas. O tom desta primeira longa-metragem de ficção da cineasta rodada em digital pertence à noite e ao entardecer. No plano final, o “Concerto para Violino n.º 1” de Dimitri Shostakovich ganha uma predominância que a música não tem ao longo do filme, com excepção das canções de plácida catarse da banda liderada por João. A articulação entre o movimento pendular na imagem e as oscilações no som transformam uma gramática do fim numa gramática do princípio. Outro elemento artístico e técnico a destacar é o som de Vasco Pimentel. A abertura dos planos, abarcando muitas coisas, exige precisão ao olhar para que seja capaz de dar a ver este mundo em perda, mas não à deriva. E os sons produzidos pelas coisas, por vezes ínfimos, surgem em camadas postas à escuta. Ganham uma clareza cristalina e remetem-nos para diversos pontos da imagem — como os sacos de plástico e as palhinhas levadas pelo vento quando o pai visita a cobertura do prédio, que se ouvem sobre uma massa de ruído, presente mas distante. No apartamento, filmado como um conjunto de espaços demarcados, em contraste, reina um pesado som abafado com a densidade do silêncio. O som tem uma qualidade topográfica. Define lugares e as suas feridas. [05.04.2018]