Rosetta, real. Jean-Pierre e Luc Dardenne. Bélgica/França, 1999. 35mm, cor, 95 min.
Não chegamos a saber porque corre Rosetta (Émilie Dequenne). Corre, simplesmente. É talvez um modo enérgico de viver. É verdade que ela corre para salvar o emprego do abuso do patrão na cena de abertura, mas essa razão não chega para compreender a corrida que ela faz vida. O filme acompanha os seus movimentos e gestos com uma câmara à mão, atenta e expectante. A essa brutal exposição corresponde um mistério indecifrável. Aceitando o ser humano como mais complexo que qualquer ordem figurativa, Rosetta não tenta explicar a protagonista, apenas regista os seus actos com intensidade. Quando o filme começa, ela é apanhada desde logo a correr. Quando pára, para chorar pela primeira vez, o filme termina. Epidérmico, este é um cinema que nos cola à pele dela sem permitir ou almejar a compreensão. No fundo, o desconhecido dela é o desconhecimento de nós mesmos. É da consciência de que nós também não nos conhecemos a nós próprios que nasce a radicalidade desta proposta artística. Numa cena, Rosetta prepara-se para dormir e repete um conjunto de frases, primeiro na segunda pessoa, depois na primeira: “Tu chamas-te Rosetta / Eu chamo-me Rosetta”, “Tu tens um amigo / Eu tenho um amigo”, “Tu tens um trabalho / Eu tenho um trabalho”. É como se viver fosse um processo de permanente mudança de ponto de vista. Ela é, em simultâneo, participante e espectadora dos episódios da sua vida, empurrada por uma força que a habita, consciente dessa força mas sem o poder de a conseguir domar completamente. É uma experiência realista, que evita a leitura sociológica, mas não tem receio do retrato social. O que é tocante é a sua disponibilidade para registar o suor, o sangue, as lágrimas, em suma, a vida. Rosetta é um filme de uma beleza que nasce da energia mais primitiva, da poesia do concreto. [28.03.2010, orig. 02.2000]