I bambini ci guardano (1943)


“As Crianças Olham para Nós”, real. Vittorio De Sica. Itália, 1943. 35mm, pb, 85 min.

Perspectivamos e apreciamos os filmes sempre num contexto. Ora o contexto pode ser este: a ligação do filme “As Crianças Olham para Nós” (I bambini ci guardano, 1943) ao Papa Francisco. Tanto quanto eu sei, esta não é uma obra de cinema que ele tenha citado como favorita, como aconteceu com A Estrada (La Strada, 1954) de Federico Fellini, também incluído neste ciclo. Mas é uma obra cinematográfica que ele já mencionou num comentário no dia 25 de Março de 2017 durante uma visita pastoral a Milão. Nessa ocasião, Francisco falou da relevância da família no desenvolvimento da fé, enfatizando a necessidade de transmitir um bom exemplo aos filhos, que observam quem os gerou ou adoptou como um modelo de comportamento. Cito o que ele disse: “Os nossos filhos olham continuamente para nós; mesmo quando não nos damos conta, eles observam-nos o tempo todo e entretanto aprendem.” Recordando especificamente o filme de 1943 de Vittorio de Sica como uma “uma verdadeira ‘catequese’ de humanidade”, ele afirmou o seguinte: “As crianças olham para nós, e vós não imaginais a angústia que um filho sente quando os pais discutem. Elas sofrem! E quando os pais se separam, são elas que pagam as consequências. Quando derdes um filho ao mundo, deveis ter a consciência disto: nós assumimos a responsabilidade de levar esta criança a crescer na fé.” A ideia é que quando as crianças sofrem psicologicamente e, por vezes, fisicamente, na família como acontece neste filme, não crescem na fé. O filme mostra isto, mas vai mais longe e mais fundo. Veremos como, mas penso que o próprio Papa tem noção disso quando acrescentou na audiência: “As crianças conhecem as nossas alegrias, as nossas tristezas e preocupações. Conseguem captar tudo, dão-se conta de tudo e, considerando que são muito intuitivas, chegam às suas conclusões e tiram as suas lições.” Podemos perguntar então: que lição tira o menino Pricò, interpretado de modo intenso por Luciano de Ambrosis? Para responder a esta questão é preciso entender o projecto estético do filme, isto é, a sua filiação no neo-realismo italiano, do qual é um dos primeiros exemplos em conjunto com Obsesssão (Ossessione) de Luchino Visconti, estreado no mesmo ano. Olhando com atenção para o filme percebemos nem era preciso esperar por Viagem em Itália (Viaggio in Italia, 1954) de Roberto Rossellini para que pudesse eclodir uma polémica crítica em torno da associação do neo-realismo italiano apenas às imagens dos pobres e abandonados, uma forma de fechar a definição do neo-realismo italiano na categoria social das suas personagens, em vez de abrir a definição a um olhar sobre o irredutível de uma fatia da realidade, seja ela qual for, como fez André Bazin. Não eclodiu essa polémica nem outra, porque o lançamento deste filme foi prejudicado pelo contexto da Segunda Guerra Mundial e depois viria a ser como que esquecido como contributo de De Sica face ao posterior Ladrões de Bicicletas (Ladri di biciclette, 1948) e até a Umberto D. (1952), no período pós-guerra. A família retratada não é abastada, mas vive bem, pode pagar férias numa estância balnear e tem uma queixosa empregada a tempo inteiro que tudo faz para proteger uma criança enredada numa triste sucessão de abandonos. Quando Francisco fala numa “‘catequese’ de humanidade” penso que quer dizer que De Sica filma as tensões e as contradições das personagens sem as julgar, expondo aquilo que nelas é humano, a sua alegria e o seu desânimo, as suas decisões e os seus impasses. No livro A Arte de Viver em Deus: A Imaginação Cristã para Elevar o Real, o frade dominicano Timothy Radcliffe escreve o seguinte: “Nada de humano é estranho a Cristo.” De modo semelhante, nada do que é humano é desinteressante para o neo-realismo italiano, mesmo quando não há grandes acontecimentos ou incidentes. Daí as cenas mais dramáticas ganharem um sentido trágico, porque efectivamente elas rasgam a lisura anterior. É através de pequenos gestos que o filme vai tecendo uma delicada trama de acções e expressões de sentimentos. Como é comum no neo-realismo, o filme demora-se em momentos que podem parecer insignificantes, mas que dão corpo à existência das personagens. Um aspecto adicional que me chamou a atenção e que certamente interessará ao Papa é o modo como este filme, na sua forma própria, já prefigura o cinema da incomunicabilidade que vamos encontrar mais tarde na obra de Michelangelo Antonioni. A mise-en-scène do filme está rigorosamente estruturada a partir de momentos e espaços onde a comunicação podia acontecer, mas não acontece, vedada por interrupções, afastamentos, portas fechadas, e elipses. O destino de cada personagem parece ser a solidão. Então que lição tira o menino Pricò? O mais interessante é que ele parece chegar à fé precisamente porque a família desistiu dele… Há muitos caminhos para a fé e o Papa não desmente isso, mesmo destacando a transmissão da fé na família. Quando, no colégio católico, choroso, o menino se afasta e se separa, choroso, a composição em profundidade, com a câmara baixa à altura dele como em muitos momentos do filme, expressa algo diferente do peso deste gesto tão dramático: expressa a sua pequenez e vulnerabilidade num mundo povoado de adultos. O pequeno Pricò aceita a sua condição de órfão com uma força que não é propriamente dele e que só posso descrever como fé, se com essa palavra quisermos designar um conjunto de coordenadas, uma cartografia da dúvida que permite a alguém dar um passo decisivo, mesmo que não decidido, num mundo volúvel, agressivo, pleno de incertezas. [01.08.2023]

Dangsin-eolgul-apeseo (2021)


Perante o Teu Rosto, real. Hong Sang-soo. Coreia do Sul, 2021. DCP, cor, 85 min.

O realizador deste filme, o coreano Hong Sang-soo, é um dos mais reconhecidos e peculiares autores de cinema contemporâneos. “Peculiares”, porquê? Vejamos. Além da sua passagem por festivais de cinema e pela programação da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, alguns dos seus filmes têm estreado comercialmente em Portugal. A 7 de Janeiro de 2021 houve uma espécie de avalanche Sang-soo: O Dia em que Ele Chega (Book chon bang hyang, 2011), O Filme de Aki (Ok-hui-ui yeonghwa, 2010), A Mulher que Fugiu (Domangchin yeoja, 2020), e Mulher na Praia (Haebyeonui yeoin, 2006) estrearam todos nesse dia. A verdade é que apenas A Mulher que Fugiu era um filme recente, produzido e estreado no Festival de Cinema de Berlim em 2020. As outras três obras tinham dez ou mais anos e nunca tinham estreado nas salas portuguesas. A 26 de Maio de 2022, não estrearam mais quatro filmes de Sang-soo. Estrearam mais dois, produzidos no ano anterior: Apresentação (Inteurodeoksyeon, 2021) e Perante o Teu Rosto (Dangsin-eolgul-apeseo, 2021). Portanto, entre 2021 e 2022, o público português pôde tirar um pouco a barriga de miséria em relação à obra deste cineasta e também perceber como é prolífico. Desde 2010 que houve vários anos em que Sang-soo realizou dois filmes por ano, o que só por si dificulta muito a distribuição e exibição atempada da sua obra. A peculiaridade do seu cinema não se esgota, no entanto, no extenso número de filmes. O seu estilo é distintivo. Começou por dar que falar com algumas das suas longa-metragens iniciais: “O Dia em que um Porco Caiu a um Poço” (Dwaejiga umul-e ppajin nal, 1996), “O Poder da Província de Kangwon” (Gangwon-do ui him, 1998), ou “A Mulher é o Futuro do Homem” (Yeojaneun namjaui miraeda, 2000), estes dois últimos mostrados no Festival de Cannes. O realismo do cinema de Sang-soo é concentrado e depurado, ambientado no espaço doméstico ou em espaços comuns que se tornam partilhados, sejam ruas, cafés, hotéis, escolas, ou jardins. Anda-se muito no seu cinema, de encontro em encontro, com maior ou menor intimidade. Muitas personagens principais estão ligadas ao cinema. Uma cena típica de um filme de Sang-soo é filmada em plano-sequência, incluindo breves zooms. Isto é o que se vê, mas há um conjunto de elementos de produção que importa conhecer. Os baixos orçamentos dos seus filmes correspondem à pequena escala de produção, com meios artesanais e um planeamento e execução flexíveis. O cineasta é muitas vezes espontâneo a filmar, entregando a cena a rodar no próprio dia de rodagem e fazendo mudanças durante a filmagem. Regra geral, os seus argumentos não são escritos de uma ponta a outra com antecedência. Em vez disso, ele começa com uma ideia básica e depois vai escrevendo ao longo da rodagem, frequentemente no próprio dia de manhã de cedo, antes de se juntar à equipa e ao elenco. Esta falta de rigidez e espontaneidade traz para os seus filmes uma forte vitalidade próxima da experiência dos ritmos do quotidiano. Não admira que o seu cinema seja comparado ao do francês Éric Rohmer, por exemplos aos quatro filmes que compõem os chamados “Contos das 4 Estações” ou ao ciclo “Comédias e Provérbios”. Encontramos todos estes elementos em Perante o Teu Rosto e, para quem não conheça o seu cinema, este é um óptimo cartão de visita porque se trata de um dos seus filmes maiores. É uma obra que exige e merece atenção, porque essa atenção é retribuída com a densidade deste mundo e destas personagens que Sang-soo coloca perante o nosso rosto. Este filme conta a história do regresso de uma ex-atriz a Seul, Sang ok, e à companhia da irmã, depois de vários anos a morar nos Estados Unidos. Dormem até tarde. Tomam um pequeno-almoço tardio. Visitam o restaurante do filho da irmã. À medida que o dia de Sang ok avança, vai-se tornando claro que ela carrega consigo um segredo, um mistério que se vai adensando e que tem algo a ver com o seu regresso, o seu trajecto na cidade, e a reunião que terá com um argumentista e realizador de cinema. O filme foi estreado no Festival de Cannes em 2021. A actriz Lee Hye-young foi justamente aclamada pela sua subtil interpretação de Sang ok. Cada um dos seus gestos convoca significados meditativos e serenos — repare-se no modo considerado e dedicado como ela olha para o que está à sua frente, por exemplo. A sua narração em off vai acompanhado a narrativa e permite-nos aceder aos seus pensamentos, em particular o modo como ela observa e entende a sua vida e tudo o que a rodeia através do prisma da graça. “Tudo o que vejo diante de mim é graça”, ouvimo-la dizer na primeira cena, e na cabeça de um cinéfilo esta frase remete para o “tudo é graça” que fecha O Diário de um Pároco de Aldeia (Journal d’un curé de campagne, 1951) de Robert Bresson. A graça está ligada ao reconhecimento da beleza no mundo, mas também a um agradecimento por algo que não se pode possuir mas que é recebido como uma oferta que realiza e salva cada ser humano. O que vemos são momentos de cumplicidade e devaneio, encontro e desencontro, que ora parecem suspensos ora parecem fugidios. Tal é a natureza do tempo, que fixa ou que deflecte. O que Sang-soo filma é também a necessidade da introspecção e do silêncio. Perante o Teu Rosto é um filme daquela simplicidade que só os mestres conseguem atingir. E aqui, como noutros filmes, Sang-soo não foi apenas o realizador e o argumentista. Foi o co-produtor, mas também o responsável pela fotografia, pela montagem, e pela música. Precisamente por isso, deixo algumas breves notas finais sobre os aspectos estilísticos do filme que espero que sejam sugestivos na sua relação com os temas da obra que referi. A fotografia digital pode parecer algo tosca, não polida, sem uma definição alta, com um controlo mínimo da iluminação e sem correcção de cor. Os enquadramentos são, no entanto, milimétricos e direccionados, por vezes com pequenos re-enquadramentos. O foco do olhar conjuga-se, assim, com uma imagem com qualidades estéticas cruas que rejeitam o lustro. Ao mesmo tempo, o trabalho do som é muito sofisticado, não só na captação do som directo que dá destaque às palavras, mas na montagem, conjugando vários sons em camadas para criar uma envolvência sonora que extravasa a imagem, expandindo-a, transcendendo-a, e dando-lhe profundidade. Eis um delicado e expressivo esboço acabado. [20.07.2023]

Veredas (1978)


Veredas, real. João César Monteiro. Portugal, 1978. 35mm, cor, 120 min.

Um dos filmes que pode ser visto numa cópia digital restaurada recentemente pelo ANIM – Arquivo Nacional das Imagens em Movimento da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema é Veredas, terceira longa-metragem de João César Monteiro. Foi recentemente exibido na Mostra de Cinema Português de Tema Medieval, organizada pelo Centro de História da Sociedade e da Cultura na Casa do Cinema de Coimbra no mês passado. Ver esta esplendorosa cópia é de alguma maneira encontrar Veredas pela primeira vez. Certamente acontecerá o mesmo com os marcantes títulos portugueses que estão em processo de digitalização e restauro. Na filmografia de Monteiro, Veredas segue-se às longas-metragens Fragmentos de um Filme-Esmola - A Sagrada Família (1975) e Que Farei Eu com Esta Espada? (1975). A primeira é uma ficção irreverente e provocatória, rodada entre 1972 e 1973, e produzida pela cooperativa Centro Português de Cinema. A segunda é uma obra mordaz que versa sobre o imperialismo americano, o capitalismo português, e as linhas ideológicas que os unem, a pretexto da contestada presença de navios da NATO em Lisboa. Como referiu o realizador na altura de estreia: “O filme procura referir, pelo contraste, como é possível lutar com uma espada contra a poderosa esquadra americana.” Ou seja, Veredas sucede a um dos filmes mais vincadamente políticos do cineasta. O projecto artístico desta obra tem uma forte ligação ao processo revolucionário iniciado com o 25 de Abril de 1974, mas a rodagem decorreu num período politicamente tenso, entre Novembro de 1975 e Julho de 1977. O filme “fabricado por João César Monteiro”, como se lê no genérico inicial, organiza-se de acordo com a pulsação da comunidade humana e de todas as outras coisas vivas que habitam no território português. O coração que pulsa é uma mulher e feiticeira, Branca-Flor (Carmen Duarte), cuja história é contada a partir dos Contos Tradicionais Portugueses, escolhidos e comentados por Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira. O itinerário pelo país, de Trás-os-Montes ao Alentejo, tem um cunho poético e musical, atravessando oito séculos e combinando lendas, mitos, folclore, e tradições. As regiões e os imaginários dialogam através da força do povo como sujeito da sua própria história. Tal como Trás-os-Montes (1976) de António Reis e Margarida Cordeiro, Veredas empenha-se numa etnografia de salvaguarda, procurando guardar elementos de uma cultura ligada à terra e à água, desvalorizada pela modernidade burguesa, mas resistente ao desaparecimento. Na tragédia Euménides de Ésquilo, assim como nos fragmentos escritos por Maria Velho da Costa a partir das imagens, o cineasta encontrou, de acordo com o próprio, uma “vocalização coral” com “um significado político muito preciso” que liga a Grécia antiga ao Portugal de Abril na “fundação de uma nova justiça, mais humana, mais democrática”. As diferentes figurações do mal, as referências à servidão, constroem parábolas sobre a opressão na sociedade e na família e a possibilidade de libertação colectiva e individual no sul e no norte de Portugal. [07.06.2023]

Women Talking (2022)


A Voz das Mulheres, real. Sarah Polley. EUA, 2022. DCP, cor, 104 min.

“O que se segue é um acto de imaginação feminina”, lê-se no ecrã antes de A Voz das Mulheres mostrar longas filas de mulheres para votarem. Usando tranquilizante de gado, vários homens tinham subjugado e violado raparigas durante a noite numa colónia menonita. Um dos homens é apanhado e denuncia outros. Os agressores são presos, depois de serem atacados pelas mulheres. A maioria dos homens exige às mulheres que perdoem ou que abandonem a comunidade. Elas decidem colocar à votação como devem responder: ceder à exigência e nada fazer, ficar e ripostar, ou sair por vontade própria. Na votação, a primeira opção (de perdão forçado) é rejeitada. As restantes duas serão discutidas longamente por um grupo de mulheres na função de delegadas. A Voz das Mulheres adapta ao cinema o livro homónimo da canadiana Miriam Toews inspirado nos abusos sexuais de mulheres, raparigas, e crianças na Bolívia. As agressões ocorreram entre 2005 e 2009 na Colónia de Manitoba, de uma denominação menonita, com raízes no movimento cristão anabaptista surgido na Suíça no século XVI. Sarah Polley, autora de Longe Dela (Away from Her, 2006) e Notas de Amor (Take This Waltz, 2011), escreveu um premiado argumento adaptado e realizou o filme. Trata-se de uma obra dramática profundamente humanista que não exclui o riso, quer para aliviar o peso da decisão, quer para fortalecer a solidariedade e a empatia. As subtis interpretações de Rooney Mara como Ona, Claire Foy como Salome, Jessie Buckley como Mariche, Judith Ivey como Agata, Sheila McCarthy como Greta, e Frances McDormand como Scarface Janz, contrapõem diferentes sensibilidades, vivências, e pontos de vista. Duas adolescentes, Autje e Neitje, respectivamente interpretadas por Kate Hallett e Liv McNeil, começam por brincar à margem da discussão na qual as suas mães, Mariche e Ona, participam. A pouco e pouco vão sendo enredadas no processo colectivo de deliberação. Escolhas de encenação como esta enriquecem aquele que é essencialmente um filme de câmara, porque a sua narrativa desenvolve-se quase exclusivamente no celeiro onde as reuniões decorrem. Este não é um espaço fechado, mas de concentração dos olhares da comunidade e de abertura para a paisagem que se estende além da colónia. Ben Whishaw interpreta um homem jovem, vindo de uma família expulsa devido ao questionamento da sua mãe, mais tarde reintegrado na comunidade como professor dos rapazes, os únicos com acesso à educação. Cabe-lhe lavrar as actas das reuniões, para guardar e transmitir a memória registada do processo. Nettie (August Winter), depois de ser violada e engravidada e perder a criança, passa a identificar-se como Melvin. Não fala. Só se sente seguro com as crianças, cuidando delas enquanto as mulheres debatem. A presença de uma personagem masculina e outra transgénero, e a tensão e o companheirismo que a acompanham, demonstram que a questão crítica não é o mero confronto entre homens e mulheres, mas o combate à opressão patriarcal e à violência do machismo. A educação para o respeito e a igualdade tornam-se fundamentais. O filme examina como a religião pode ser usada para agrilhoar, em vez de libertar, as pessoas. No entanto, A Voz das Mulheres não encaminha as personagens para uma renúncia simplista das suas convicções religiosas, descartando o essencial enquanto retêm o supérfluo por zelo excessivo ou despropositado. Pelo contrário, o debate é denso e complexo, lúgubre e alegre, a resolução é apaziguadora, porque as mulheres partem dos fundamentos da sua fé, aprofundando-os — em especial o princípio da não-violência. Karl Marx fechou as Teses sobre Feuerbach (1845) com a ideia de que não basta interpretar o mundo, é preciso transformá-lo. Nesta obra cinematográfica subjaz a ideia de que a imaginação por si só também não é suficiente, é preciso que ela esteja ligada à acção emancipadora. [20.04.2023]

Finding Forrester (2000)


Descobrir Forrester, real. Gus Van Sant. EUA, 2000. 35mm, cor, 136 min.

A claquete com o título do filme e o nome do realizador é fechada e o filme começa. Depois, um negro improvisa um rap. As rimas evocam o espírito do Bronx, onde a narrativa se vai desenvolver. O plano transmite o programa realista de Descobrir Forrester, atento aos elementos que caracterizam este lugar e estas personagens. É um plano que mostra o processo de construção e instauração de um olhar, simultaneamente mecânico e humano — um olhar que rouba imagens ao mundo ou as recria para o entender. É também isso que faz William Forrester, interpretado por Sean Connery — e o seu olhar é o predominante, não o que conduz o filme, mas aquele que toca as personagens principais com vitalidade. É um olhar tecido de solidão, amargura, memória, e curiosidade. O último plano avança através da janela até enquadrar um jogo de basquetebol e corresponde à visão do velho escritor, que admira o mundo à distância, aparentemente sem se envolver nele. Ele olha do alto e de longe, mas nunca é visto. Tal como o rapper que diz as suas palavras para a câmara, também os jovens sabem que estão a ser observados, mas sem conseguirem ver quem os observa. Mas essa distância magoada de Forrester não exclui a envolvência. Ou, pelo menos, uma observação de que a sua figura apesar de ser exterior aos circuitos sociais e literários continua a tocar alguém, a circular entre as pessoas, eventualmente com alguns equívocos, mas permanece presente através do único livro que escreveu. Além disso, ele alimenta-se daquilo que vê, seja a energia dos jogadores, seja a beleza de um pássaro. Quer ver bem, por isso passa muito tempo a limpar os vidros da sua janela. O plano já comentado corresponde à sua visão e corre durante todo o genérico final. O tempo desenrola-se à medida da sua disponibilidade para descansar o olhar no mundo em movimento. A janela de Forrester é uma via de acesso ao mundo e é sintomático que a imagem que ela oferece sobre a cidade vá pontuando o filme. Sobre os encontros entre o miúdo e o velho podemos dizer que são trocas, numa dinâmica de perguntas e respostas, conhecimento mútuo. Contra a inexperiência do novo, a experiência do velho. Contra a morte presente no idoso, a vida do rapaz. Jamal Wallace (Rob Brown) torna-se escritor e o velho escritor escocês reencontra o sentido da sua vida. O livro que tinha escrito para ser publicado postumamente, com um prefácio de Wallace, chama-se, não por acaso, Pôr-do-Sol (Sunset). É um filme frágil, mas a sua força vem dessa fragilidade. Pode-se pensar que este filme é talvez demasiado parecido com O Bom Rebelde (Good Will Hunting, 1997), mas Descobrir Forrester conta uma história de aprendizagem, de como usar e desenvolver o talento para fazer florescer a vida. Há alguma semelhança, é certo, mas o mais significativo neste caso é a curiosidade por esse olhar que olha atento sem ser visto. Essa reclusão é distintiva. O miúdo negro vive num meio onde o horizonte de escolhas é muito limitado. Escreve sozinho e às escondidas. Até a sua mãe fica espantada com os resultados do filho, como se fosse difícil de acreditar no contexto das expectativas que tem. Quando ele chega à escola de prestígio, já impulsionado por Forrester, entrega trabalhos brilhantes e o seu professor, Crawford (F. Murray Abraham), não acredita que alguém com as suas origens, vindo do Brox, tenha o talento que ele parece demonstrar ter. Resta saber onde fica esta clivagem social daqui para a frente, se é apagada como se não existisse, depois do filme a reconhecer, ou se permanece de alguma maneira através da figura do forasteiro, que pode ser usada para descrever tanto Forrester como Wallace. A integração de Wallace passa pela relação com outras personagens, como Claire (Anna Paquin), ainda que esta personagem quase não exista além desta função. Nada tem tanta força quanto o que se passa entre Forrester e Wallace, como demonstra a cena da máquina de escrever ou até a da leitura de Forrester, apesar do esquematismo dramático. Gus Van Sant esmera-se na direcção de actores e concentra a obra no essencial, trabalhando bem o formato largo da imagem, nos exteriores e nos interiores, nas dimensões, na geometria. A fotografia queimada pelo sol e pela luz dá ao filme um tom permanentemente liminar, como se o ambiente intimista do apartamento de Forrester se estendesse a tudo o resto. A cena em que Forrester abandona a casa é magnífica. Wallace consegue convencê-lo. Ele pergunta-lhe se está bem, o miúdo responde-lhe que ele está fora de moda, mas que está bem. Antes de sair, põe os óculos escuros para manter a distância. É interessante que saiam de noite, depois do sol se ter posto. Mas Forrester sai, para se perder no tráfego citadino e voltar à Escócia para morrer. [26.02.2023, orig. 04.2001]

Dog Star Man (1961-64)


Dog Star Man, real. Stan Brakhage. EUA, 1961-64. 16mm, cor, 78 min.

É considerada a obra-prima do cineasta. Para outros, filmes posteriores têm ainda mais valor. As partes podem ser vistas individualmente, porque foram concebidas separadamente. Prelude (1962) tem duas películas sobrepostas. As partes II (1963), III (1964), e IV (1964) têm 2, 3, e 4. O filme existe numa versão maior chamada The Art of Vision (1965) de quatro horas, com uma imensa combinação e sobreposição das diferentes partes. É o épico visual sobre o ser pai, sobre o que é criar uma família isolado de tudo. Todos os dias parava numa loja onde tinham livros. Um dia, viu um livro de nome Dog Star Man sobre um cowboy. Pensou que era semelhante a Steinbeck. Era horrível, mal escrito. É a história de um homem que sobe uma montanha até chegar a uma árvore morta que ele corta, para fazer lenha. O homem é um soldado ou apenas um homem que corta a árvore que representa a civilização. Desempregado e a viver em casa dos pais da sua mulher, Brakhage perguntou-lhes o que podia fazer para ajudar e eles sugeriram que ele cortasse lenha. Ele aparece no filme a subir a montanha, a cortar lenha, a lutar com uma árvore morta. Depois de um prelúdio onírico. A densa montagem e sobreposição de imagens chama a atenção para a vida as células e do sol e das estrelas e para o presente da cultura ocidental, do Egipto ao Cristianismo. Esta parte I é a subida. A parte II refere-se à história da família, ao nascimento. A parte III é um sonho diurno de teor sexual. Assombrado por um sentido de falhanço, o filme acaba com uma desconstrução que adquire uma dimensão cósmica. A parte IV é uma complexa recapitulação, um colapso, um cair de joelhos, um espasmo contínuo à deriva pelas estrelas. [21.02.2023, orig. 09.2005]

The Dante Quartet (1987)


The Dante Quartet, real. Stan Brakhage. EUA, 1987. 16mm/35 mm, cor, 8 min.

Este filme absorve a visão de Dante, no sentido onírico e perceptivo. Os seus escritos e a sua obra são uma exploração da relação paradoxal dessas duas dimensões, sensorial e psíquica. Em ligação com outras vanguardas, Brakhage reivindica a prioridade da visão interior, a sua aptidão e direito fundamental a informar a visão exterior. É um trabalho pintado que demorou seis anos a ser produzido. Tem seis minutos. Demonstra as condições terrenas do “Inferno”, “Purgatório” (ou “Transição”), “Paraíso” (ou “Existência é Canção”, o mais próximo do Paraíso), assim como o motivo principal do Inferno (Hell Spit Flexion) em quatro partes. Parte um: as formas pintadas parecem querer agarrar-se uma à outra. Parte dois: pintada num quadro dentro da imagem, criando uma distância do espectador. Parte três: pintada sobre diversas filmagem em 35 mm, vislumbramos figuras como que através do fogo ou de labaredas. Parte quatro: explosões de cores sobre imagens da lua e de um vulcão em erupção. No liceu, um professor de inglês deu-lhe como trabalho ler A Divina Comédia. Tornou-se um objectivo que o acompanhou na vida. Até este filme ele tinha lido todas as traduções em inglês do livro que conseguiu arranjar. Num dado momento já não podia mais, já tinha tudo nos olhos, uma visão do Inferno, uma maneira de sair do Inferno. [21.02.2023, orig. 09.2005]

The Birthday Girl (2001)


Da Rússia com Amor, real. Jez Butterworth. EUA/Reino Unido, 2001. 35mm, cor, 93 min.

Estória interessante de duas personagens, um homem e uma mulher, que consideram que falharam nas suas vidas e se vêem envolvidas numa existência que não ambiocionaram. Ele, John (Ben Chaplin), teve um desgosto amoroso e tem um emprego de que não gosta — está sozinho e recorre a uma agência de encontros internacional. Ela, Sophia, aliás Nadia, (Nicole Kidman), vem da Rússia para o Reino Unido em resposta ao pedido dele, mas está envolvida num esquema criminoso do qual se quer libertar. O cineasta Jez Butterworth encontrou um tempo e um tom, nos planos narrativo e dramático, singulares, que abrem suspensões e produzem cortes numa progressão mais inesperada do que seria de prever. Num filme que passa da comédia romântica para o thriller, as soluções mais óbvias são evitadas, em muitos casos a partir do modo criativo como são trabalhadas as convenções destes géneros, feito de surpresas e detalhes, desvios e subtilezas (desde logo através do formato largo da imagem). As personagens interpretadas por Vincent Cassel e Mathieu Kassovitz podiam ter outro desenvolvimento e outra densidade, é certo. Uma das ideias fundamentais da obra é o alinhamento com John, momento a momento — veja-se quando ele observa Nadia a falar com Alexei (Cassel) como se fosse cinema mudo. O essencial passa-se entre ele e ela, como o segredo valioso que ela partilha com ele e que está relacionado com o título original do filme. Só no fim é que ele e ela trocam nomes. [19.02.2023, orig. 05.2002]

O Trio em Mi Bemol (2022)


O Trio em Mi Bemol, real. Rita Azevedo Gomes. Espanha/Portugal, 2022. DCP, cor, 127 min.

Um casal divorciado, Adélia (Rita Durão) e Paul (Pierre Léon), reencontra-se. Certo dia, ela bate-lhe à porta e ele abre. Vão encontrar-se uma vez em cada estação do ano para conversar sem pressas. O Trio em Mi Bemol (2022), estreado no Festival de Cinema de Berlim e agora exibido em Portugal, baseia-se na única e homónima peça de teatro escrita pelo cineasta Éric Rohmer, figura central da Nova Vaga Francesa. O traço definidor do filme talvez seja a sua depuração, uma simplicidade densa que combina vários elementos e diversas referências. O cinema de Rita Azevedo Gomes é eclético, integrando um percurso artístico que atravessa as artes plásticas e gráficas, a ópera, o teatro, a literatura, e a música. O trabalho da artista na direcção artística e no guarda-roupa explica o cuidado cenográfico patente nos seus filmes como realizadora, desde a sua primeira longa-metragem O Som da Terra a Tremer (1990) até obras mais recentes como A Vingança de Uma Mulher (2012) e A Portuguesa (2019). O Trio em Mi Bemol é basicamente um filme de câmara, isto é, uma obra que decorre quase sempre num único espaço feito cenário. Trata-se da casa de Alexandre Alves Costa em Moledo do Minho, desenhada por Álvaro Siza Vieira. O espaço arquitectónico permite mapear as emoções das personagens, com as suas dobras e rectas, transparências e opacidades, e contiguidades e separações. É mais um exemplo do modo como este cinema se alimenta de outras manifestações estéticas e artísticas para ganhar corpo e unidade. A palavra tem sido um elemento fundamental nos filmes de Azevedo Gomes, como demonstra Correspondências (2016), baseado nas cartas escritas entre Sophia de Mello Breyner Andresen e Jorge de Sena. Em O Trio em Mi Bemol fala-se francês, castelhano, e português, mas o essencial é a palavra como expressão do (des)acordo e da (des)atenção. Ao casal afastado que se reaproxima, o argumento escrito pela realizadora acrescentou duas personagens: um realizador, Jorge (Ado Arrieta), e uma assistente (Olivia Cábez), de um filme dentro do filme baseado na peça. Esta opção não acrescenta apenas mais uma camada narrativa, muda também a caracterização das duas personagens principais, que passam também a ser uma actriz e um actor. Sem retirar força ao texto de Rohmer, O Trio em Mi Bemol cria espaços de distanciamento sobre a natureza performativa da vida e os significados dos gestos e das palavras nas relações interpessoais. O filme começa, precisamente, com uma cena repetida com uma posição da câmara tão diferente como as interpretações de Rita e Pierre. Essa diferença mostra a importância da encenação cinematográfica, pesando a proximidade e o afastamento das personagens, a (in)comunicabilidade entre elas e a sua interacção com a casa e os objectos. Neste sentido, este é um exímio exercício de mise-en-scène. Um aforismo atribuído a Rohmer pode servir de guia na apreciação desta obra: “O cinema está mais próximo da música do que da pintura, porque não é feito de imagens, mas de planos, onde o tempo flui por dentro como na música.” Como se diz e se ouve no filme, a música age sobre os corpos das pessoas e talvez as aproxime ou as afaste. A questão do ecletismo musical é discutida em muitos momentos — gostar de rock impede que se aprecie a música de Johann Sebastian Bach? — porque o carácter diverso dos elementos que se juntam em união é um dos temas da peça e do filme. Em sintonia com estas inquietações temáticas, o título provém de uma composição musical, “Trio em Mi Bemol”, composta por Wolfgang Amadeus Mozart para um conjunto de três instrumentos: viola, clarinete, e piano. Nesta música e neste filme, os instrumentos e as vozes harmonizam-se numa relação amorosa, delicada e intrincada, com a maturação do tempo. [22.12.2022]

Accattone (1961)


Accattone, real. Pier Paolo Pasolini. Itália, 1961. 35mm, pb, 117 min.

Accattone foi a estreia na realização de Pier Paolo Pasolini. O interesse de Pasolini pelo cinema era antigo. Na adolescência queria estudar cinema, mas tal não veio a acontecer. Pasolini chegou ao cinema relativamente tarde na sua carreira artística, com quase 40 anos, depois de já ter o nome firmado como escritor e intelectual. Conhecido como poeta, tinha publicado o seu primeiro romance em 1955, Rapazes da Vida (Ragazzi di vita), e um outro em 1959, Uma Vida Violenta (Una vita violenta), que se passavam nos bairros habitados por gente do sub-proletariado em Roma e retratavam as duras e precárias condições de vida em que viviam, à margem do que então era descrito como um boom económico italiano. Pasolini começou a colaborar na escrita de argumentos em especial para filmes herdeiros do neo-realismo como Noite Brava (La notte brava, 1959), que desenvolviam narrativas nesse mundo periférico e pobre cuja representação começava a escassear nos ecrãs. Como marxista, Pasolini adoptava uma clara posição de classe pelos explorados e marginalizados da sociedade italiana. Isso não quer dizer que o seu cinema seja uma obra guiada pelo protesto político. Isso seria simplificar o que é complexo. Accattone estreou em 1961 no Festival de Veneza e dividiu as opiniões na altura. E a esta distância, face a um filme tão comentado e hoje tão apreciado, podemos dizer que nenhum dos grupos que se degladiaram nessa altura tinha razão, tendo em conta os argumentos que utilizaram. Por um lado, os detratores condenaram sumariamente o filme como uma afronta aos valores conservadores que dominavam cada vez mais a vida pública italiana. O filme era incómodo porque mostrava, precisamente, o mundo que ainda existia em Itália e que as classes mais afluentes queriam eliminar, ou, no mínimo, esconder — um mundo selvagem e violento, reminescente da cultura camponesa, longe da urbanidade cosmopolita, um mundo que apesar de tudo resistia. E esta bolsa de resistência tinha um valor único para Pasolini, porque estava a fazer frente ao avanço da cultura de consumo capitalista, que para ele correspondia a uma profunda alteração antropológica, a uma mudança irreparável do próprio sentido da existência humana. Para ele, estas obras eram, portanto, uma espécie de trabalho etnográfico sobre uma cultura viva, com raízes profundas em Itália. Por outro lado, os admiradores elogiaram Accattone pela sua suposta filiação no neo-realismo, cujo período histórico já tinha chegado ao fim em meados da década de 1950 — talvez por isso tivesse havido a necessidade de falar de um neo-neo-realismo. A aproximação que alguma crítica de cinema fez do filme de Pasolini ao neo-realismo tinha a ver com elementos como a condição social “baixa” das personagens principais, a utilização de locais de filmagem reais e de actores não profissionais, e a autenticidade, a força quase directa de muitas das cenas. Há pelo menos dois problemas com este foco. Primeiro, esses são traços superficiais associados ao neo-realismo, que aliás não encontramos em todos os filmes do movimento, veja-se o caso paradigmático e muito discutido de Viagem a Itália (Viaggio in Italia, 1954) de Roberto Rossellini — paradigmático e muito discutido, precisamente por isso, por exigir uma reflexão sobre a definição do neo-realismo como projecto artístico. Segundo, a importância dada a estes traços ignora os aspectos em que Accattone se afasta claramente do neo-realismo. Estes argumentos reflectem a dificuldade em enquadrar o cinema único de Pasolini. Bernardo Bertolucci, que foi assistente de realização no filme e seria um importante cineasta italiano nas décadas seguintes, disse: “Ao ver Pier Paolo filmar Accattone senti que estava a presenciar a invenção do cinema.” Se Pasolini reinventou o cinema foi também porque tinha uma certa distância em relação a essa arte e até um desconhecimento da forma usual de a fazer. Esta situação deu-lhe margem para entender o cinema de um modo muito próprio, ligando-o a outros campos artísticos (como a literatura, a música, a pintura) e a outras linhagens estéticas (como o maneirismo). Para atalharmos caminho, é preciso reconhecer, sem negar a influência do neo-realismo, que esta primeira longa-metragem de Pasolini é uma obra lírica de tons religiosos e existencialistas, densamente composta em camadas num estilo anti-naturalista, já dentro dos vectores estéticos que o seu “cinema de poesia”, como ele lhe chamou, irá desenvolver posteriormente, misturando elementos que podem parecer díspares. Por exemplo, dois desses elementos surgem logo no início, ainda antes de mergulharmos na realidade dos bairros pobres nas periferias de Roma. No fim do genérico inicial, muito clássico, o filme oferece-nos uma citação de A Divina Comédia de Dante Alighieri — da segunda parte do poema, dedicada ao “Purgatório”, mais concretamente da secção V sobre o “Alto Purgatório”, morada transitória das almas das pessoas que amaram em excesso. A passagem é sobre uma alma que ascende ao céu por causa de uma pequena lágrima sincera. Também será na morte que Accattone se encontra, é nesse momento que “está bem”, depois de uma vida em que esteve quase sempre mal, em risco permanente. Ou seja, o destino de Accattone, pode ser lido precisamente a partir destes versos de Dante, embora Pasolini talvez não seja tão peremptório como Dante. Ao longo do genérico inicial ouvimos também a música sacra de Johann Sebastian Bach, que será um elemento recorrente ao longo do filme. De resto, a junção de elementos procede a partir do abalo de dicotomias, entre a comédia e o drama, a alta e a baixa cultura, ou entre o erudito e o popular, entre o cristão e o pagão, entre o profano e o sagrado. Abalar estas dicotomias não é negar a diferença entre os termos, significa antes trazer estes termos como contradições para o centro do cinema, colocá-los em comunicação na narrativa da existência humana, situado num espaço e num tempo concretos. Concluindo, Accattone faz um retrato da subclasse urbana em Roma que os olhares turísticos não viam. Na verdade, só na parte final do filme é que surgem imagens mais reconhecíeis da cidade, quando os protagonistas se deslocam para o centro urbano. O fim da personagem aparece, aliás, ligado a esse deslocamento, como se aquele não fosse o lugar dele. Segundo Pasolini, o filme tentou captar através destas personagens socialmente desprezadas, muito imperfeitas, capazes de coisas terríveis e de coisas generosas, que falam como profetas, são aocmpanhadas por anjos, tratam os santos como familiares, benzem-se muitas vezes à sua maneira, “uma força do passado, mais moderna do que qualquer modernista”. Numa entrevista a Oswald Stack publicada em 1969, Pasolini desenvolve esta ideia. Falando sobre a sequência do sonho de Accattone, Pasolini explica que se trata de uma visão da personagem sobre a sua existência que é “épica-mítica-fantástica”, sem nenhuma das características típicas da pequena burguesia. Há uma resposta de Pasolini nessa conversa que diz ainda mais sobre esta sequência, sobre a personagem, e sobre o mundo que o cineasta procurou retratar, com uma forte ligação à citação de Dante que abre o filme. Diz ele: “A burguesia substituiu o problema da alma, que é transcendental, pela consciência que é uma coisa puramente social e mundana. A projecção metafísica que Accattone faz da sua própria vida num mundo além é mítica e popular; não é pequeno burguesa, é pré-burguesa. […] O catolicismo em Accattone ainda retém as características pré-burguesas, pré-industriais e portanto míticas que são típicas do povo.” E é claro que podemos de imediato estabelecer relações entre este comentário e os filmes que Pasolini dirigiu depois, em particular a O Evangelho Segundo São Mateus (Il vangelo secondo Matteo), feito 3 anos depois, a obra de um ateu com uma “sensibilidade cristã” como ele disse uma vez. É que isso, sendo outra história, não deixa de ser a mesma história. [16.10.2022]