I bambini ci guardano (1943)


“As Crianças Olham para Nós”, real. Vittorio De Sica. Itália, 1943. 35mm, pb, 85 min.

Perspectivamos e apreciamos os filmes sempre num contexto. Ora o contexto pode ser este: a ligação do filme “As Crianças Olham para Nós” (I bambini ci guardano, 1943) ao Papa Francisco. Tanto quanto eu sei, esta não é uma obra de cinema que ele tenha citado como favorita, como aconteceu com A Estrada (La Strada, 1954) de Federico Fellini, também incluído neste ciclo. Mas é uma obra cinematográfica que ele já mencionou num comentário no dia 25 de Março de 2017 durante uma visita pastoral a Milão. Nessa ocasião, Francisco falou da relevância da família no desenvolvimento da fé, enfatizando a necessidade de transmitir um bom exemplo aos filhos, que observam quem os gerou ou adoptou como um modelo de comportamento. Cito o que ele disse: “Os nossos filhos olham continuamente para nós; mesmo quando não nos damos conta, eles observam-nos o tempo todo e entretanto aprendem.” Recordando especificamente o filme de 1943 de Vittorio de Sica como uma “uma verdadeira ‘catequese’ de humanidade”, ele afirmou o seguinte: “As crianças olham para nós, e vós não imaginais a angústia que um filho sente quando os pais discutem. Elas sofrem! E quando os pais se separam, são elas que pagam as consequências. Quando derdes um filho ao mundo, deveis ter a consciência disto: nós assumimos a responsabilidade de levar esta criança a crescer na fé.” A ideia é que quando as crianças sofrem psicologicamente e, por vezes, fisicamente, na família como acontece neste filme, não crescem na fé. O filme mostra isto, mas vai mais longe e mais fundo. Veremos como, mas penso que o próprio Papa tem noção disso quando acrescentou na audiência: “As crianças conhecem as nossas alegrias, as nossas tristezas e preocupações. Conseguem captar tudo, dão-se conta de tudo e, considerando que são muito intuitivas, chegam às suas conclusões e tiram as suas lições.” Podemos perguntar então: que lição tira o menino Pricò, interpretado de modo intenso por Luciano de Ambrosis? Para responder a esta questão é preciso entender o projecto estético do filme, isto é, a sua filiação no neo-realismo italiano, do qual é um dos primeiros exemplos em conjunto com Obsesssão (Ossessione) de Luchino Visconti, estreado no mesmo ano. Olhando com atenção para o filme percebemos nem era preciso esperar por Viagem em Itália (Viaggio in Italia, 1954) de Roberto Rossellini para que pudesse eclodir uma polémica crítica em torno da associação do neo-realismo italiano apenas às imagens dos pobres e abandonados, uma forma de fechar a definição do neo-realismo italiano na categoria social das suas personagens, em vez de abrir a definição a um olhar sobre o irredutível de uma fatia da realidade, seja ela qual for, como fez André Bazin. Não eclodiu essa polémica nem outra, porque o lançamento deste filme foi prejudicado pelo contexto da Segunda Guerra Mundial e depois viria a ser como que esquecido como contributo de De Sica face ao posterior Ladrões de Bicicletas (Ladri di biciclette, 1948) e até a Umberto D. (1952), no período pós-guerra. A família retratada não é abastada, mas vive bem, pode pagar férias numa estância balnear e tem uma queixosa empregada a tempo inteiro que tudo faz para proteger uma criança enredada numa triste sucessão de abandonos. Quando Francisco fala numa “‘catequese’ de humanidade” penso que quer dizer que De Sica filma as tensões e as contradições das personagens sem as julgar, expondo aquilo que nelas é humano, a sua alegria e o seu desânimo, as suas decisões e os seus impasses. No livro A Arte de Viver em Deus: A Imaginação Cristã para Elevar o Real, o frade dominicano Timothy Radcliffe escreve o seguinte: “Nada de humano é estranho a Cristo.” De modo semelhante, nada do que é humano é desinteressante para o neo-realismo italiano, mesmo quando não há grandes acontecimentos ou incidentes. Daí as cenas mais dramáticas ganharem um sentido trágico, porque efectivamente elas rasgam a lisura anterior. É através de pequenos gestos que o filme vai tecendo uma delicada trama de acções e expressões de sentimentos. Como é comum no neo-realismo, o filme demora-se em momentos que podem parecer insignificantes, mas que dão corpo à existência das personagens. Um aspecto adicional que me chamou a atenção e que certamente interessará ao Papa é o modo como este filme, na sua forma própria, já prefigura o cinema da incomunicabilidade que vamos encontrar mais tarde na obra de Michelangelo Antonioni. A mise-en-scène do filme está rigorosamente estruturada a partir de momentos e espaços onde a comunicação podia acontecer, mas não acontece, vedada por interrupções, afastamentos, portas fechadas, e elipses. O destino de cada personagem parece ser a solidão. Então que lição tira o menino Pricò? O mais interessante é que ele parece chegar à fé precisamente porque a família desistiu dele… Há muitos caminhos para a fé e o Papa não desmente isso, mesmo destacando a transmissão da fé na família. Quando, no colégio católico, choroso, o menino se afasta e se separa, choroso, a composição em profundidade, com a câmara baixa à altura dele como em muitos momentos do filme, expressa algo diferente do peso deste gesto tão dramático: expressa a sua pequenez e vulnerabilidade num mundo povoado de adultos. O pequeno Pricò aceita a sua condição de órfão com uma força que não é propriamente dele e que só posso descrever como fé, se com essa palavra quisermos designar um conjunto de coordenadas, uma cartografia da dúvida que permite a alguém dar um passo decisivo, mesmo que não decidido, num mundo volúvel, agressivo, pleno de incertezas. [01.08.2023]