Passagem ou a Meio Caminho, real. Jorge Silva Melo. Portugal, 1980. 16mm, cor, 85 min.
A primeira longa-metragem de Jorge Silva Melo tornou-se um filme raramente encontrado, um objecto quase invisível, ao contrário de uma obra sua feita oito anos depois, Agosto (1988). Passagem ou a Meio Caminho (1980) foi apresentado publicamente pela primeira vez no Festival de Cinema da Figueira da Foz, onde foi acolhido de forma fria, distanciada, para desilusão de um autor que se dirigia à sua geração, e não chegou a ter estreia comercial. Rodado em 16mm e contando com um extenso conjunto de colaborações artísticas, o filme parte da vida e obra de Georg Büchner, escritor e dramaturgo alemão do século XIX. O foco é o espírito revolucionário de Büchner, mas é sobretudo a vivência e o confronto desse espírito com um mundo em convulsão. Na verdade, e como o próprio realizador indicava nas suas notas de produção, este não é um filme biográfico, mas de ficção, no qual Büchner surge como uma figura central no cruzamento de associações e contradições, num tom nostálgico e céptico. Passagem ou a Meio Caminho foi uma produção do Grupo Zero Cooperativa de Cinema, uma das cinco cooperativas que resultaram da fragmentação do Centro Português de Cinema após o 25 de Abril de 1974. Esta estrutura partilhava as instalações do Teatro do Bairro Alto em Lisboa com o Teatro da Cornucópia, fundado por Silva Melo e Luís Miguel Cintra. O Grupo Zero foi coordenado por Alberto Seixas Santos e Solveig Nordlund, que fez a montagem deste filme com Teresa Caldas. Não é uma mera coincidência que uma cooperativa de cinema tão dedicada ao registo e reflexão sobre diversas facetas do processo revolucionário português — a reforma agrária, as cooperativas de pescadores, e os processos de alfabetização — tenha produzido esta obra. Também é relevante mencionar que o filme foi, em grande parte, rodado n’A Voz do Operário, especialmente na sua biblioteca. Ou seja, desde logo pela produção e local de rodagem, este é também um filme sobre o Portugal de 1980 ou o rescaldo da Revolução do Cravos. O filme começa com uma tradução para português em off de um texto de Lilian Hellman sobre Dashiell Hammett em inglês. A voz apresenta várias soluções de tradução para algumas palavras e explica que leu essa passagem em 1968. Assim se lança a ideia de que há uma voz da narração, possivelmente autoral, situada no século XX e em Portugal. Traduzir, filmar, e montar são aqui meios de revelar e adicionar camadas. Passagem ou a Meio Caminho combina diversos tempos e lugares, e a relação entre Hellman e Hammet, a dificuldade da primeira em falar sobre o segundo, é semelhante à relação entre Silva Melo e Büchner: uma intimidade tão profunda que impede a escrita biográfica, permitindo apenas uma ficção (auto-)biográfica. A tensão entre o colectivo e o indivíduo, que atravessa o filme é indissociável da saída de Silva Melo da Cornucópia em 1979. O encenador chegou mesmo a dizer numa entrevista a Francisco Ferreira em 2013 que o filme lhe parecia, à distância, “narcisista, demasiado centrado numa dor pessoal”, embora já não o visse há muito tempo. Dizia ele que faltavam um interlocutor para Büchner, mas, em vez disso, há vários interlocutores como o teólogo revolucionário e o intelectual que pugna pela violência. Se várias vozes habitam e cercam a mente de Büchner, faz sentido que ele converse com várias personagens. Para indagar o sentimento de perda em relação ao impulso revolucionário, Passagem ou a Meio Caminho apresenta a palavra e a escrita como espaços onde a intimidade do ser se decide. Esta indagação toma uma forma fragmentária, palimpséstica, constelar, próxima dos escritos do filósofo marxista alemão Walter Benjamin, que muito influenciou Silva Melo. Em cada momento, sobressai uma pergunta: como lidar com o fracasso na juventude nesta aventura de dissabores, traições, e solidão? No filme, a nostalgia não é pelo passado, mas pelo futuro, e é nesta deslocação que surge uma inextinguível centelha de esperança. O fervor dos revolucionários é visto a partir de uma perspectiva crítica que expõe a dificuldade ou a crise do diálogo revolucionário, e portanto também a sua necessidade, em vez de pura e simplesmente negar a validade da ideia de utopia. A utopia não aponta para o lugar que não existirá, mas para o lugar que ainda não existe nem pode ser capturado. Em Passagem ou a Meio Caminho, rapidamente percebemos que a revolução não será filmada porque terá de ser vivida, parafraseando com alguns retoques uma canção do músico americano Gil Scott-Heron. É uma liberdade parecida e tão justa como a que encontramos neste filme de Silva Melo. [14.09.2024]