Catembe (1965)


Catembe, real. Manuel Faria de Almeida. Portugal, 1965. 35mm, cor, 45 min.

Catembe pode finalmente ser visto nas salas de cinema, quase 70 anos depois. Foi recentemente digitalizado e restaurado com o apoio do Projecto FILMar da Cinemateca Portuguesa, no âmbito dos EEA Grants. É um objecto fundamental para entender os mecanismos de propaganda e censura da ditadura fascista em Portugal. O filme durava originalmente 87 minutos. O Ministério do Ultramar/Agência Geral do Ultramar impôs 103 cortes ao filme em 1965, que totalizaram cerca de 45 minutos, e ordenou a destruição dos negativos das partes cortadas. Depois deste processo e de uma única apresentação pública no cinema Império em Lisboa a 6 de Dezembro de 1965, a versão censurada acabou por ser proibida de estrear comercialmente em Fevereiro de 1966. Segundo a Comissão de Censura, não era “oportuna a sua exibição”. A produção do documentário tinha sido subsidiada pelo Fundo do Cinema Nacional, que visava divulgar as colónias portuguesas nos ecrãs de cinema. A proibição teve como contexto o alastramento da Guerra Colonial desde 1961, de Angola para a Guiné-Bissau e Moçambique, a região que o filme retrata. A cópia agora disponibilizada foi digitalizada e restaurada a partir do material original em 35mm e corresponde à versão censurada, com a duração de 45 minutos. O realizador Manuel Faria de Almeida conseguiu conservar parte dos minutos cortados da versão original e, em 2009, entregou à Cinemateca os 11 minutos de cortes que possuía. O material cortado pode agora ser analisado para entender a lógica do censor. A cópia sobrevivente de Catembe só pode ser descrita como um conjunto de restos de uma obra destruída pela censura do Estado Novo. Seja como for, podemos dizer que os traços gerais do filme sobreviveram. Numa declaração em 1963, o realizador dizia que pretendia combinar três narrativas. A primeira estaria centrada nas grandes construções e nos locais turísticos de Lourenço Marques. A segunda seria uma investigação sobre os habitantes da cidade e os seus pensamentos. A terceira combinaria o retrato da vila piscatória de Catembe com uma estória de amor vivida por uma rapariga com o nome da vila, que se desenrolava no clube de dança Luso, onde brancos e negros conviviam (como se pode ver nas cenas cortadas). Catembe é, assim, um documentário semificcionado que utiliza diversas opções estéticas para confrontar o espectador com a realidade na capital da colónia moçambicana, mas também com a visão da capital do império sobre Lourenço Marques, actual Maputo. O cinema directo é usado logo nas entrevistas da sequência de abertura nas quais o realizador pergunta sobre Lourenço Marques a quem passa pela Baixa de Lisboa. Outras parte do filme recorrem a entrevistas mais planeadas, com som síncrono sobre imagens em movimento e som assíncrono sobre imagens fixas. Há momentos ficcionados, como as cenas que envolvem as “bifas,” as raparigas inglesas. Há também momentos líricos com alguma carga erótica, como quando ouvimos o poema de amor de Mara Guimarães, lido por Manuela Arraiano, sobre as imagens de um casal a namorar na relva de um jardim. Catembe documenta o quotidiano de cada dia de uma semana em Lourenço Marques, mas no separador “Quinta-Feira / A Poesia da Outra Banda” há um desvio. O filme sai da cidade para outro destino, geograficamente próximo mas distante no ambiente: Catembe, “a vila poética do pescador do camarão ligada a Lourenço Marques pela ponte da imaginação”, uma “sugestão de lenda, de lenda ancorada na realidade”, como nos diz a voz-off. A importância dada ao retrato desta vila, que escapou ao cinema, como é dito no próprio filme, é reforçada pelo facto de dar título ao filme. Manuel Faria de Almeida tinha nascido em Lourenço Marques em 1957 e foi um dos fundadores do cineclube local. Estudou cinema em Londres. Estagiou no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos em Paris e trabalhou nos arquivos da Cinemateca Francesa. Além de ter sido um dos dinamizadores do Novo Cinema Português, foi presidente da Tobis Portuguesa entre 1974 e 1976 e do Instituto Português de Cinema entre 1976 e 1977. Parece claro que o projecto de Catembe era mostrar o que a ditadura queria esconder, furar a carapaça da propaganda, o que dá ao filme um tom fantasmático. O que vem de Lourenço Marques são fantasmas para assombrar a visão que o Estado Novo promovia sobre as colónias africanas. Como o próprio cineasta explicou: “Na verdade, eu sabia que a ideia que em Portugal se fazia de Moçambique era a dos negros com bandeiras na mão, em alas, deixando passar o Presidente da República, vestido de branco, brindado por papelinhos multicolores atirados das varandas. Ninguém sabia como as pessoas ali viviam, que pessoas, como pensavam elas, como se divertiam e quais os seus problemas. Era isto que eu queria mostrar, e pensava que as entidades oficiais tinham percebido a intenção.” Tanto perceberam a intenção que o filme foi irremediavelmente mutilado. [29.11.2023]