Sicilia! (1999)


Sicília!, real. Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Alemanha/França/Itália, 1999. 35mm, pb, 66 min.

Não se pode falar com alguma profundidade de Sicília! sem o colocar em contexto. Há pelo menos dois elementos que definem contextos precisos para este filme. O primeiro elemento é, obviamente, a obra de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet e a retrospectiva na Casa do Cinema Manoel de Oliveira e a exposição “Jean-Marie Straub e Danièle Huillet: Na Cratera do Vulcão” têm-nos oferecido este contexto. O segundo elemento é o filme de Pedro Costa, Onde Jaz o Teu Sorriso? (Où gît votre sourire enfoui?, 2001), que documenta a montagem da terceira versão de Sicília! Um dos temas que perpassa por Onde Jaz o Teu Sorriso? é o da relação entre a ideia, a matéria, e a forma. Logo no início do documentário, ouvimos Straub dizer: “Não espere pela forma antes do pensamento.” E Huillet replica: “A forma aparecerá ao mesmo tempo.” Na verdade, o cinema feito por ele e por ela nasce da relação dialéctica entre as estas duas posições. São duas posições que podem parecer excludentes, mas que correspondem a diferentes momentos da criação do filme ou até a diferentes entendimentos desse processo. A primeira posição salienta a independência e a sucessão das partes (primeiro a ideia, depois o seu confronto com a matéria, do qual resulta a forma). A segunda posição salienta a cooperação e a simultaneidade das partes (a ideia é refeita no confronto da matéria e desse refazer em confronto nasce a forma). A demonstração de que há uma relação dialéctica entre estas duas posição está no próprio filme de Pedro Costa, sobretudo nos momentos de decisão sobre a montagem do filme, que Onde Jaz o Teu Sorriso? mostra sequencialmente, começando com a cena inicial no porto e terminando na cena final centrada no amolador. Às tantas, Straub parafraseia Tomás de Aquino que, segundo ele, afirmou que “a alma nasce da forma do corpo,” acrescentando, bem-disposto, que, como este pensador era napolitano, sabia o que dizia. A frase do teólogo dominicano na Summa Theologica não é bem assim — é, na verdade, “a alma intelectual é a forma do corpo” —, o que altera o significado da afirmação e, mais uma vez, volta a chamar a atenção para a natureza dialéctica do processo de criação fílmica. Ora esta dialéctica que pode ser detectada no plano da expressão tem um vínculo com as convicções políticas que Sicília! corporiza. Esta longa-metragem é baseada em excertos de um romance anti-fascista de Elio Vittorini, Conversação na Sicília (Conversazione in Sicilia), publicado originalmente em parcelas na revista literária Letteratura entre 1938 e 1939. Nascido em Siracusa, Sicília, Vittorini assumiu-se inicialmente como um “fascista de esquerda.” Em 1937, portanto um ano antes de começar a escrever Conversação na Sicília, já a contradição insustentável dessa expressão estava exposta e Vittorini foi expulso do Partido Nacional Fascista, liderado por Benito Mussolini, devido a apoiar publicamente o lado republicano na Guerra Civil Espanhola. A partir dessa altura fez um percurso político na esquerda italiana, passando pelo Partido Comunista Italiano. Em Onde Jaz o Teu Sorriso?, Huillet explica que quiseram fazer este filme a partir do texto de Vittorini porque o leram em conjugação com a memória de um episódio que ocorreu em 1972. Nesse ano, Straub e Huillet andavam por Itália em busca de lugares para filmar Moisés e Aarão (Moses und Aron), dois anos depois. Percorreram lentamente milhares de quilómetros. Um dia, em cima de uma ponte, disseram um para o outro: “Que cheiro tão estranho. Não é desagradável, mas é muito intenso, que será?” E viram várias centenas de quilos de laranjas despejadas num rio. Ficou-lhes na memória. Quando leram o início de Conversação na Sicília, veio-lhes à mente esta recordação muito forte. Esta explicação deixa muito por explicar, como é evidente. Seja como for, introduz um tema central de Sicília!: a memória. Esta é a narrativa de um homem (interpretado por Gianna Buscarino) que regressa à sua terra de origem, depois de quinze anos a viver na cidade de Nova Iorque, dado biográfico que não consta no texto original, no qual a personagem regressa de Milão. O filme mostra uma série de encontros no decurso desta viagem, o mais longo destes encontros deste homem que se tornou estrangeiro é com a sua mãe, no município de Vizzini, província de Catania, na Região Autónoma Siciliana. Mais do que encontros, são, na verdade, reencontros. Ou seja, o homem cruza-se sempre com algo que conhece e reconhece, na porto, no comboio, e na cidade, mesmo que tal não pareça inicialmente e mesmo que esse (re)conhecimento surja misturado com algo que desconhece. A perspectiva revolucionária que molda o cinema de Straub e Huillet está em sintonia com esta noção de reencontro e com a sua valorização estética e política. Numa entrevista a François Albera, Straub foi bastante claro: “É preciso então voltar ao que diz Benjamin; a revolução também é ‘colocar em seu lugar coisas muito antigas, mas esquecidas’ (Péguy). Os filmes que nos fazem sentir isso são filmes políticos.” Em duas frases, o realizador convoca o filósofo marxista Walter Benjamin, o pensador católico Charles Péguy, e implica Huillet nesta visão, que ela não desmente. Como Jacques Rancière bem assinalou, a tradição revolucionária na qual Straub e Huillet se inscrevem rejeita o progresso cuja base seria o novo cintilante. Em vez disso, defende um desenvolvimento que implique uma ruptura com modos de viver e relações económicas de dominação e a preservação e a redescoberta do que se enraizou, um regresso à terra, à humanidade (re)integrada na natureza, aquilo a que estudioso de cinema Daniel Fairfax designa por “comunismo ecologista.” Em Sicília!, o homem que regressa tem dificuldade em lidar com tais paradoxos. Tal é manifesto, por exemplo, na discussão com a sua mãe sobre o seu avô, que ele não compreende como podia ser socialista e cristão, participando activamente na procissão de São José. As coisas antigas são tanto o arenque grelhado dessa sequência como a navalha que o homem passa ao amolador para afiar na sequência final. Sendo que nem todas as coisas antigas são dignas de preservação e valorização, como os dois oficiais de polícia sinistros que planeiam a repressão política no comboio. O estilo fílmico de Sicília! é altamente depurado, separando cada um dos elementos visuais e sonoros de forma cristalina. A representação opta pela “abstração teatral,” como Jean-Marie Straub a descreve no documentário de Pedro Costa: o texto é dito com pontuações rigorosas, complementadas com gestos lentos e marcados. Os enquadramentos salientam a profundidade do espaço, através de diversas linhas de perspectiva, o que faz com que cada imagem seja simultaneamente despojada e densa. Antes e depois do reencontro entre o homem e a sua mãe, o filme faz uso de um movimento de câmara que exemplifica estas opções e o seu valor artístico. Trata-se de uma panorâmica repetida três vezes ao longo de Sicília! que varre a paisagem de Vizzini até ao cemitério da cidade e depois faz o movimento inverso para se fixar no centro da cidade, ao longe. Antes do reencontro, este plano aparece duas vezes seguidas, a primeira ao nascer do sol, a segunda a meio do dia. Depois do reencontro, reaparece precisamente da mesma maneira, mas a meio da tarde. Para expressar a passagem cíclica do tempo, o filme convida-nos a contemplar as mesmas coisas por três vezes e a observar esta paisagem como um cenário da história humana que ali se tem desenrolado, reflectindo a marca da comunidade que nela reside, trabalha, e vive, com as suas delimitações, construções, e plantações, os seus acessos, e os seus mortos enterrados. Das várias montagens de Sicília! resultaram também duas curtas-metragens de 20012: O Viajante (Il viandante) e O Amolador (L’arrotino). No fundo, são obras que sublinham a importância central da montagem no cinema de Straub e Huillet como elemento determinante para a construção orgânica da forma fílmica. Deixo apenas breves observações sobres estes dois filmes. O Viajante foi construído a partir de um simples fragmento da parte final da sequência de reencontro entre o homem e a sua mãe. O primeiro plano começa exactamente com o plano aproximado da mãe quando ela fala sobre um verão terrível, depois de olhar para baixo, e a chegada de um viajante, olhando já para o filho. O último plano termina com último corte da sequência. Se a sequência integral em Sicília! oscila entre a evocação de um passado do qual o filho se lembra e um passado que ele esqueceu ou que nunca conheceu, O Viajante salienta mais o desconhecimento dele ao concentrar-se na história pessoal contada pela mãe sobre o viajante. Há vários momentos na longa-metragem, como aquele em que a mãe está junto à janela a falar sobre a montanha de onde partia a procissão de São José através das palavras e do olhar para o exterior, em que algo que não vemos é evocado. Em O Viajante, essa evocação joga de modo mais intenso com os olhares desencontrados das duas personagens, cada uma no seu espaço. A mãe a narrar e a lembrar-se. O filho a perguntar e a querer saber. O Amolador foi construído a partir dos planos que compõem a sequência final de Sicília!, entre o homem e o amolador. O primeiro plano é aquele que introduz o amolador na longa-metragem, mas ao contrário de O Viajante, o último plano de O Amolador não coincide com o de Sicília! Os últimos 30 segundos do plano foram cortados, tempo que corresponde a uma suspensão do movimento, quando o homem e o amolador permanecem na mesma posição, de pé, com os braços caídos. Esta fixidez e quietude rima com a cena inicial no porto, na qual Gianna Buscarino é visto de costas na metade esquerda do quadro, com um miúdo ao longe na metade direita. O movimento é mínimo até Buscarino rodar a cabeça para a esquerda para conversar com o vendedor de laranjas. Em vez do movimento do mar, o plano final tem o movimento das folhas das palmeiras. Ora esta rima só faz sentido na estrutura de Sicília!, pelo que o corte deste parte deste plano final é consistente com o isolamento desta sequência do resto da longa-metragem em O Amolador. [12.11.2023]