Mandabi, real. Ousmane Sembène. França/Senegal, 1968. 35mm, cor, 92 min.
Mandabi é a segunda-longa metragem de Ousmane Sembène, produzida dois anos depois de La noire de… (1966), vencedor do Prémio Jean Vigo. O filme narra a estória de um senegalês muçulmano, Ibrahima Dieng, que vive com duas esposas, Mety e Aram, e sete filhos nos subúrbios de Dakar, no limiar da subsistência. Desempregado há quatro anos, Ibrahima recebe uma ordem de pagamento (mandabi) no valor de 25 mil francos de um sobrinho emigrado em França que trabalha como varredor de rua. O dinheiro seria para dividir por Ibrahima e a sua irmã, e guardar para o sobrinho, que o juntou do salário como varredor de rua em Paris. Ao tentar levantar o dinheiro, o analfabeto Ibrahima é confrontado com numerosos obstáculos. Mandabi foi galardoado com o Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza de 1968. Sembène foi um cineasta senegalês convictamente marxista. Numa entrevista a Guy Hennebelle em 1969, explicou: “O que é interessante para mim é expor os problemas que o meu povo teve de enfrentar. […] Considero o cinema principalmente como um instrumento político de acção.” No entanto, não lhe interessava fazer obras de propaganda política, mas filmes populares dirigidos às massas. Na sua filmografia, esta é a segunda adaptação fílmica de um texto literário seu. Tal viria a acontecer mais vezes, mas há dois elementos novos em Mandabi que permanecem nos filmes subsequentes: o uso da língua uolofe e da fotografia a cores. Depois da independência em 1960, o Senegal manteve o francês como língua oficial, embora o uolofe seja a língua franca e a mais falada no Senegal. Ao fazer filmes falados em uolofe, Sembène afirmava o seu compromisso com um realismo crítico que não soasse a falso. No caso de Mandabi, o francês é falado por burocratas e pessoas da classe mais abastada, à qual pertence outro sobrinho de Ibrahima, M’baye Sarr, um homem de negócios que não olha a meios para enriquecer, enganando até os familiares. Nos filmes anteriores, Sembène tinha optado pela fotografia a preto e branco. A partir de Mandabi, o cineasta filmou sempre a cores. A cor é um elemento estético de grande complexidade visual que o realizador não conseguiu integrar organicamente no seu cinema desde o início. Como explicou em entrevistas, ele considerava também que havia o risco de cair no folclórico. Ora, em Mandabi a cor é trabalhada para distinguir e caracterizar espaços, ambientes, classes, e personagens. Quanto mais o filme se afasta da casa da família de Ibrahima, mais desaparecem as cores vivas e os padrões tradicionais. Isso faz com que a presença deslocada de Ibrahima nos espaços urbanos e institucionais se torne mais notória. A interpretação de Makhouredia Gueye como este homem desnorteado, da periferia social, roça o burlesco. A preocupação com a aparência é transversal a várias personagens, mas em Ibrahima é conjugada com a afirmação máscula e o descontrolo sôfrego, a piedade e a presunção religiosas, e a compaixão e a ingenuidade. Na realidade pós-colonial do Senegal, ele é uma figura complexa e contraditória que representa quem ficou para trás, empurrado para a periferia social que o filme retrata. Tal como Ibrahima, a maioria do povo senegalês pertence a irmandades sufis. O sufismo, o misticismo islâmico, dá mais importância à prática do amor do que às regras religiosas. Ibrahima procura seguir esse caminho, sem a sabedoria, a humildade, e a responsabilidade das suas solidárias esposas. Assim, Mandabi subverte a proteção do homem em relação às mulheres como justificação para a poligamia. [21.05.2024]