Dangsin-eolgul-apeseo (2021)


Perante o Teu Rosto, real. Hong Sang-soo. Coreia do Sul, 2021. DCP, cor, 85 min.

O realizador deste filme, o coreano Hong Sang-soo, é um dos mais reconhecidos e peculiares autores de cinema contemporâneos. “Peculiares”, porquê? Vejamos. Além da sua passagem por festivais de cinema e pela programação da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, alguns dos seus filmes têm estreado comercialmente em Portugal. A 7 de Janeiro de 2021 houve uma espécie de avalanche Sang-soo: O Dia em que Ele Chega (Book chon bang hyang, 2011), O Filme de Aki (Ok-hui-ui yeonghwa, 2010), A Mulher que Fugiu (Domangchin yeoja, 2020), e Mulher na Praia (Haebyeonui yeoin, 2006) estrearam todos nesse dia. A verdade é que apenas A Mulher que Fugiu era um filme recente, produzido e estreado no Festival de Cinema de Berlim em 2020. As outras três obras tinham dez ou mais anos e nunca tinham estreado nas salas portuguesas. A 26 de Maio de 2022, não estrearam mais quatro filmes de Sang-soo. Estrearam mais dois, produzidos no ano anterior: Apresentação (Inteurodeoksyeon, 2021) e Perante o Teu Rosto (Dangsin-eolgul-apeseo, 2021). Portanto, entre 2021 e 2022, o público português pôde tirar um pouco a barriga de miséria em relação à obra deste cineasta e também perceber como é prolífico. Desde 2010 que houve vários anos em que Sang-soo realizou dois filmes por ano, o que só por si dificulta muito a distribuição e exibição atempada da sua obra. A peculiaridade do seu cinema não se esgota, no entanto, no extenso número de filmes. O seu estilo é distintivo. Começou por dar que falar com algumas das suas longa-metragens iniciais: “O Dia em que um Porco Caiu a um Poço” (Dwaejiga umul-e ppajin nal, 1996), “O Poder da Província de Kangwon” (Gangwon-do ui him, 1998), ou “A Mulher é o Futuro do Homem” (Yeojaneun namjaui miraeda, 2000), estes dois últimos mostrados no Festival de Cannes. O realismo do cinema de Sang-soo é concentrado e depurado, ambientado no espaço doméstico ou em espaços comuns que se tornam partilhados, sejam ruas, cafés, hotéis, escolas, ou jardins. Anda-se muito no seu cinema, de encontro em encontro, com maior ou menor intimidade. Muitas personagens principais estão ligadas ao cinema. Uma cena típica de um filme de Sang-soo é filmada em plano-sequência, incluindo breves zooms. Isto é o que se vê, mas há um conjunto de elementos de produção que importa conhecer. Os baixos orçamentos dos seus filmes correspondem à pequena escala de produção, com meios artesanais e um planeamento e execução flexíveis. O cineasta é muitas vezes espontâneo a filmar, entregando a cena a rodar no próprio dia de rodagem e fazendo mudanças durante a filmagem. Regra geral, os seus argumentos não são escritos de uma ponta a outra com antecedência. Em vez disso, ele começa com uma ideia básica e depois vai escrevendo ao longo da rodagem, frequentemente no próprio dia de manhã de cedo, antes de se juntar à equipa e ao elenco. Esta falta de rigidez e espontaneidade traz para os seus filmes uma forte vitalidade próxima da experiência dos ritmos do quotidiano. Não admira que o seu cinema seja comparado ao do francês Éric Rohmer, por exemplos aos quatro filmes que compõem os chamados “Contos das 4 Estações” ou ao ciclo “Comédias e Provérbios”. Encontramos todos estes elementos em Perante o Teu Rosto e, para quem não conheça o seu cinema, este é um óptimo cartão de visita porque se trata de um dos seus filmes maiores. É uma obra que exige e merece atenção, porque essa atenção é retribuída com a densidade deste mundo e destas personagens que Sang-soo coloca perante o nosso rosto. Este filme conta a história do regresso de uma ex-atriz a Seul, Sang ok, e à companhia da irmã, depois de vários anos a morar nos Estados Unidos. Dormem até tarde. Tomam um pequeno-almoço tardio. Visitam o restaurante do filho da irmã. À medida que o dia de Sang ok avança, vai-se tornando claro que ela carrega consigo um segredo, um mistério que se vai adensando e que tem algo a ver com o seu regresso, o seu trajecto na cidade, e a reunião que terá com um argumentista e realizador de cinema. O filme foi estreado no Festival de Cannes em 2021. A actriz Lee Hye-young foi justamente aclamada pela sua subtil interpretação de Sang ok. Cada um dos seus gestos convoca significados meditativos e serenos — repare-se no modo considerado e dedicado como ela olha para o que está à sua frente, por exemplo. A sua narração em off vai acompanhado a narrativa e permite-nos aceder aos seus pensamentos, em particular o modo como ela observa e entende a sua vida e tudo o que a rodeia através do prisma da graça. “Tudo o que vejo diante de mim é graça”, ouvimo-la dizer na primeira cena, e na cabeça de um cinéfilo esta frase remete para o “tudo é graça” que fecha O Diário de um Pároco de Aldeia (Journal d’un curé de campagne, 1951) de Robert Bresson. A graça está ligada ao reconhecimento da beleza no mundo, mas também a um agradecimento por algo que não se pode possuir mas que é recebido como uma oferta que realiza e salva cada ser humano. O que vemos são momentos de cumplicidade e devaneio, encontro e desencontro, que ora parecem suspensos ora parecem fugidios. Tal é a natureza do tempo, que fixa ou que deflecte. O que Sang-soo filma é também a necessidade da introspecção e do silêncio. Perante o Teu Rosto é um filme daquela simplicidade que só os mestres conseguem atingir. E aqui, como noutros filmes, Sang-soo não foi apenas o realizador e o argumentista. Foi o co-produtor, mas também o responsável pela fotografia, pela montagem, e pela música. Precisamente por isso, deixo algumas breves notas finais sobre os aspectos estilísticos do filme que espero que sejam sugestivos na sua relação com os temas da obra que referi. A fotografia digital pode parecer algo tosca, não polida, sem uma definição alta, com um controlo mínimo da iluminação e sem correcção de cor. Os enquadramentos são, no entanto, milimétricos e direccionados, por vezes com pequenos re-enquadramentos. O foco do olhar conjuga-se, assim, com uma imagem com qualidades estéticas cruas que rejeitam o lustro. Ao mesmo tempo, o trabalho do som é muito sofisticado, não só na captação do som directo que dá destaque às palavras, mas na montagem, conjugando vários sons em camadas para criar uma envolvência sonora que extravasa a imagem, expandindo-a, transcendendo-a, e dando-lhe profundidade. Eis um delicado e expressivo esboço acabado. [20.07.2023]