O Mundo, real. Zhang-ke Jia. França/Japão/RPC, 2004. 35mm, cor, 143 min.
Oportunamente, o IndieLisboa homenageou a singular obra de Zhang-ke no ano passado. Este é o segundo filme do realizador chinês a estrear em Portugal, mas é a sua terceira longa-metragem e é um excelente exemplo da sua liberdade criativa. É mais um olhar sobre a China, depois do fresco histórico sobre as mudanças radicais da década de 80 em Plataforma (Zhantai, 2000), mas um olhar sobre o presente de Pequim, o centro de um país onde a ruralidade foi sendo absorvida, não apagada, por uma vivência urbana tipicamente pós-moderna. As figuras cruzam-se num lugar de simulação e espectáculo, um parque onde os visitantes podem ver réplicas de construções emblemáticas de todo o mundo e assistir a vistosos divertimentos. Como em Nashville (1975) ou no recente Crash (2004), não há protagonistas: há um mosaico de personagens. Na obra de Paul Haggis, as diversas linhas narrativas vão-se fechando, retratando relações sociais e tensões raciais. Em O Mundo, a narrativa é aberta, pode recomeçar ou ser suspensa a qualquer momento. Para esta abertura contribui a opção de dirigir as cenas a partir do espaço, pela duração, distanciamento ou proximidade, dos planos. Os actores são inscritos espacialmente pelos ângulos da câmara, quase sem recorrer à montagem para destacar gestos e expressões. O filme abre-se por isso para uma cidade tão imaginária e real como cada uma das pessoas que o formato largo abarca. Prolongando as experiências em suportes digitais em dois documentários curtos e no inédito Ren xiao yao (2002), o cineasta usa o vídeo de alta definição para enaltecer a textura das coisas num hiper-realismo que é associado a sequências de desenhos animados por computador. Uma postura contemplativa que documenta as identidades na China contemporânea é portanto combinada com uma vontade de seguir estes seres até ao limite das suas emoções e ficções — repare-se, por exemplo, como as animações estão ligadas às pessoais mensagens escritas em telemóveis. Em toda a sua riqueza formal e densidade humana, O Mundo desvenda a vida por entre as brechas das imagens, projectando desta forma as personagens para além das suas imagens, onde o fim pode ser um início. [12.03.2011, orig. 03.2006]