Onde Bate o Sol (1989)


Onde Bate o Sol, real. Joaquim Pinto. Portugal, 1989. 35mm, cor, 88 min.

Este e o filme anterior de Joaquim Pinto, Uma Pedra no Bolso (1988), partem do desenraizamento de uma personagem. Em Uma Pedra no Bolso, um miúdo é enviado para casa da tia na Atalaia, Lourinhã. Aqui, Nuno visita a irmã em Vouzela, Viseu. Ambos chegam a lugares desconhecidos que vão descobrindo à medida que lidam com dilemas e encontram caminhos para percorrer. A diferença está sobretudo na paisagem. Vouzela é no interior, um sítio sem mar, onde a vastidão do céu é desvendada pela planície árida — por isso surgem no princípio e no fim da obra, respectivamente. Onde Bate o Sol é um objecto singular, depurado e intrincado em simultâneo. Desde o início que cruza perspectivas, encadeia divagações, nomeadamente através do uso da voz off. É difícil identificar um protagonista neste mundo de diversas histórias e classes. Num momento, o foco muda de Nuno, que joga à bola, para uma criada que se lembra da bebedeira dele no casamento da irmã e de ter limpo o que ele partiu. Noutro momento, fica clara a ideia da passagem de geração em geração das mesmas pesadas condições de vida da classe trabalhadora, entre o ajudante Alberto (Marcello Urgeghe) e o aprendiz Zé (Francisco Nascimento), embora seja sugerido que Alberto não quer que isso aconteça. O mais velho está a tentar ler um livro que trouxe da casa dos patrões e não sabe o que quer dizer “dissipar”, quando o mais novo pega numa camisa dele — aos quadrados, como todas as que veste — e pergunta se não lhe fica bem. Alberto tira-lhe imediatamente a camisa das mãos, como se não quisesse que ele se transformasse noutro como ele. O olhar do filme é assim descentrado e fragmentado. Joaquim Pinto trabalhou desde o final da década de 1970 como técnico de som, o que faz com que este elemento seja fundamental nas suas obras. Em Onde Bate o Sol, as dobragens tornam-se ecos da temática. Laura Morante (Laura, irmã de Nuno) foi dobrada por Maria de Medeiros, Joaquim Vicente (Artur, marido de Laura) por Luís Miguel Cintra, e Marcello Urgeghe por António Ricardo. É como se falassem com uma voz herdada à qual estão acorrentados sem terem voz própria. Tudo acontece num tempo de Verão em que as experiências e os sentimentos ganham intensidade. Sobressaem tensões acumuladas e vividas em Portugal, entre o atavismo e o progresso, depois das transformações da Revolução de Abril terem sido estancadas. A professora conservadora, fiel a um cristianismo aburguesado e admiradora do colonialista Alexandre de Serpa Pinto e da “identidade nacional”, mostra bem como o presente é ensombrado pelo passado. O moralismo ameaçador associado à Igreja irrompe logo quando Nuno chega ao quarto, abre uma portada, e deita um olhar furtivo à capela — um instante de perturbação e inquietação sublinhado pela música dissonante e pelo plano subjectivo. O pudor na representação do adultério feminino e da homossexualidade masculina não é um falso pudor — há um beijo breve entre Laura e Francisco, mas a atracção entre Nuno e Alberto é apenas insinuada. Em vez disso, retrata e disseca o constrangimento que governa estas vidas. Daí que nestes dias também se vislumbre a liberdade que podia reinar, fazendo lembrar o verso escrito por Sophia de Mello Breyner Andresen: “Os dias de verão vastos como um reino”. [07.08.2013]