Eldorado XXI, real. Salomé Lamas. França/Peru/Portugal, 2016. DCP, cor, 125 min.
A voz sofrida faz do canto de cada palavra um trabalhoso, ainda que mínimo, ganho de fôlego: “Rinconada, Lunar de Ouro, só tu sabes quanto chorei. / Ritipata, riticucho, pallaqueaba com os meus amigos. / Madrugada após madrugada, suportando frio e fome. / Madrugada após madrugada, ai que triste é a vida. / Mãezinha lutadora, tu que trabalhas dia e noite. / Mãezinha lutadora, tu que trabalhas dia e noite. / Enquanto os homens, se crêem valentes, abandonam os seus filhos. / Enquanto os homens se crêem valentes, continuam a beber no bar.” A mulher que canta estas palavras vive e trabalha em La Rinconada nos Andes peruanos, a povoação de maior altitude no mundo. Ouvimos a sua voz cansada e corajosa, mas as imagens não mostram qualquer presença humana. A vida escasseia na imensa paisagem gélida que vemos. A vegetação baixa é rara. As aves voam solitárias. De forma gradual, de imagem para imagem, as construções da vila vão aparecendo, mas é fácil confundi-las com o resto do território, como se dele emergissem organicamente. Eis a introdução de Eldorado XXI. A segunda longa-metragem realizada por Salomé Lamas a estrear nas salas de cinema portuguesas já foi mostrada em muitas competições e mostras no continente europeu e americano, do Festival Internacional de Cinema de Berlim ao Museu de Arte Moderna em Nova Iorque. Venceu no ano passado o Grande Prémio do Porto/Post/Doc. A primeira longa dirigida pela cineasta a estrear em Portugal, Terra de Ninguém (2012), era um documentário que se punha à escuta das estórias de um homem, Paulo, que se dizia ex-mercenário. Eldorado XXI é, por contraste, uma obra documental onde a paisagem dos Andes é a primeira protagonista e, depois, os seus habitantes, sem que nenhum seja definido como principal. O contexto é detalhado, ao contrário do fundo negro sobre o qual Paulo desenvolvia as suas narrativas, acentuando o magnetismo do seu discurso. Daí que, após o breve genérico, o olhar etnográfico se concentre no movimento pendular dos mineiros que se cruzam numa íngreme subida. Acompanhamos o ciclo dos operários que chegam e que partem, de modo contínuo, através de um plano que dura mais de 57 minutos. É um gesto arriscado, arrojado, mas recompensador porque vamos vendo de maneira diferente à medida que ouvimos testemunhos comoventes, noticiários radiofónicos, campanhas políticas, entrevistas informativas. Esta é uma terra árida e glaciar, socialmente violenta, sem saneamento básico, aquecimento, policiamento, serviços de saúde, onde viver é um combate diário sem descanso. Um lugar infernal, uma “terra de ninguém”, como uma das vozes femininas diz, remetendo-nos para o título do filme anterior. Muitas pessoas foram lá parar por desespero, na esperança de encontrar algum minério e sair da pobreza. Outras querem enriquecer rapidamente através do desejado ouro. A maior parte dos mineiros trabalha nas minas que são propriedade da Corporação Ananea, que junta mais de 400 empresas de exploração. Subsiste uma forma de trabalho ancestral, o cachorreo, realizado pelas mulheres, que não estão autorizadas a trabalhar nas minas. Estas pallaqueras trabalham nas pedras que sobram das minas à procura de minério que podem levar consigo ao 31.º dia, depois de 30 dias a trabalhar sem receber. Continuam a trabalhar com as mesmas ferramentas e os mesmos meios dos tempos antigos. A segunda parte de Eldorado XXI opta pela sincronia entre a imagem e o som. Nesta opção, distingue-se da primeira em que a diferença entre o que vemos e o que ouvimos coloca o espectador numa posição reflexiva, antes de mergulhar nesta realidade e se aproximar destas pessoas. Se o formato largo da imagem se ajustava à vastidão da paisagem e à torrente de mineiros, também se ajusta à paisagem mais íntima desta população mineira, porque o filme vai moldando a mudança de escala para fazer sobressair a ligação orgânica entre o grande e o pequeno. Neste segmento, a câmara procura sempre composições cuidadas que tiram partido das linhas de força de deslocações e posições na relação com o fundo. Dentro de portas, há conversas sobre o rumo político do Peru e os anseios sempre por responder de quem vive do seu trabalho, enquanto se convive entre companheiras. Fora de portas, decorre uma reunião das comissões de trabalhadores de Cerro Lunar, uma povoação próxima de La Rinconada, enquanto as mãos descansam de procurar minério. Desdobram-se os momentos de trabalho ao longo do dia, nos montes das sobras rochosas e nas imediações das minas. De noite, as ruas são percorridas por homens que regressam cambaleantes dos bares. As máscaras disformes de longos narizes e testas enrugadas que os homens usam junto à fogueira surgem como um ritual de sublimação transmitido de geração em geração. Fazem-se oferendas a Awichita, imagem feminina e fértil, guardiã dos tesouros da montanha, para pedir a protecção e a prosperidade dos trabalhadores nas minas. Observa-se um sincretismo cultural e religioso: o culto a Pachamama, reverenciada pelos povos indígenas dos Andes como a deusa-mãe da terra e do tempo, coexiste com as grandes celebrações católicas. O tom final é de festa, para esmorecer a tristeza. A entrada para uma mina lembra-nos aquilo a que não tivemos acesso. Ficámos sempre sobre a terra, mas em lugares tão inóspitos que parecem sepulturas, não fossem as vozes que cantam aquilo que os corpos fazem. [09.02.2017]