Vitalina Varela (2019)


Vitalina Varela, real. Pedro Costa. Portugal, 2019. DCP, cor, 124 min.

Estamos desde o início do lado da morte, mas nesse lugar palpita vida. Vitalina Varela chega a Lisboa já viúva. O corpo do marido, Joaquim de Brito Varela, servente de pedreiro, electricista, já estava enterrado. Esperou em vão o regresso dele de Portugal. Ficou para trás. Sentiu-se esquecida. Decide ficar, fazer o luto, curar as feridas, reparar os danos. Encontra um padre debilitado que a guia por entre escombros e assombrações e lhe diz que perdeu a fé (embora a sua acção o desminta). É o mesmo Ventura de anteriores obras realizadas por Pedro Costa, mas é também outro. Ele explica a Vitalina de onde vêm: “Era uma noite imensa, partindo o mundo em dois. Aquela metade era a que ficara envolta em sombra. E dessa sombra nós somos feitos.” Que viagem fez ela? De Cabo Verde para Portugal, mas também de Cavalo Dinheiro (2014) para Vitalina Varela. O cinema de Pedro Costa é uma arte em trânsito. Cruza as marcas da história esquecida ou ignorada com as linhas de uma nova narrativa. O colonialismo português, o seu sistema jurídico-político racista, a exploração de mão-de-obra escrava, um povo agrilhoado na sua própria terra — tudo isso terminou. Foi vencido pelos movimentos de libertação nacional e pela Revolução de Abril. Ficou a discriminação e segregação na sociedade portuguesa das pessoas negras vindas das ex-colónias, a marginalização das suas famílias, inseparável da divisão social em classes. Esta exclusão confirma-se na representação cinematográfica e combate-se com um cinema solidário que rejeita ser exterior ao que filma. Desde Casa de Lava (1994) que Costa olha esta realidade sem dispensar uma clara consciência de classe. Nesse filme, a queda de um trabalhador negro da construção civil em Lisboa precipita o reencontro do presente com um passado que não passou. De Ossos (1997) a Juventude em Marcha (2006) percebe-se que as bolsas de pobreza nas periferias lisboetas agregam pessoas de diferentes etnias e com várias cores de pele. Mas entende-se igualmente que a comunidade negra carrega sobre si uma herança histórica específica. Os filmes de Costa não são um caso único de protagonismo negro no cinema português. Basta pensar nos dramas realistas e romanescos de Basil da Cunha. O que distingue Cavalo Dinheiro e Vitalina Varela é a abordagem evocativa de um tempo longo através da atenção aos detalhes, na qual o rigor da composição e a abertura da colaboração rimam com responsabilidade recíproca e interesse comum. Vitalina Varela, em particular, estabelece subtis ligações entre o presente e o passado que ampliam a sua avassaladora vibração emotiva. O maior exemplo disso é a ligação entre o barraco de Joaquim e a casa que ele e Vitalina começaram a construir em Cabo Verde, uma imagem do amor entre ambos. Vitalina cava, planta, cuida, reconstitui a memória de um laço amoroso. Cada vida é um mundo. A escuridão que as personagens habitam vai-se abrindo à luz do dia no funeral de Marina. Leonardo Simões dirige a fotografia com um domínio perfeito do contraste entre luz e sombra, destacando a singularidade das pessoas e dos objectos com gobos que esbatem e focalizam a iluminação. [11.02.2021]