Titanic (1997)


Titanic, real. James Cameron. EUA, 1997. 35mm, 70mm, cor, 194 min.

“Titanic” é mais do que uma palavra, mais do que um título. É a porta de acesso a um universo de referências e ficções — que, do incidente que pôs em causa as proezas da revolução industrial ao romantismo transfigurador do filme, se constituiu em acontecimentos que, podemos dizê-lo, emocionaram o mundo. Este fenómeno deve-se em grande parte ao gigantismo dos projectos. De facto, do navio ao filme, a palavra associada ao imenso que se desdobra em universal. As primeiras imagens do filme indicam, desde logo, uma dimensão fantasmática que será explorada numa dupla vertente: a procura do apaziguamento da memória e o romantismo que enforma a estória. Tudo isso é articulado e figurado através de um arriscado gesto de cinema: o melodrama como possibilidade de criação de um outro olhar sobre a catástrofe. Um olhar diferente, em que a identificação com as personagens dá outra espessura dramática ao desastre. Há nesta dinâmica uma sequência fundamental, quando um dos exploradores mostra à envelhecida Rose (Gloria Stuart) uma simulação de computador que reproduz com exactidão o naufrágio do navio. Esta cena consegue não só anular a surpresa — que provavelmente nunca existiria dado o conhecimento generalizado sobre o que aconteceu —, mas essencialmente representar o filme que James Cameron não estava interessado em fazer. Em vez de partir da reconstituição, o realizador parte das ruínas para dar outro sentido ao regresso. Daí a pergunta: “Estão preparados para regressar ao Titanic?”, feita por Brock Lovett (Bill Paxton). Prolongando esta lógica, a atitude arqueológica que leva ao confronto com os vestígios do navio é equivalente ao olhar do cineasta sobre o melodrama. Ao encerrar num tempo mágico uma estória que parece não ter espaço de existir no presente, o cineasta caracteriza esse tempo com uma aura de mundo perdido. Não um tempo anacrónico, mas um passado que se lança para a intemporalidade, pela estilização da figuração (os fundos parecem cartão pintado), pela pormenorização do imaginário novecentista, e principalmente pela ênfase dada aos elementos clássicos através da revisão do mito romântico. A morte e o suicídio, por exemplo, são algumas das imagens desse mito e veja-se a importância que elas adquirem no filme. Rose (Kate Winslet) tenta suicidar-se e acaba por experimentar a iminência da morte. Um oficial mata-se, pontuando a situação descontrolada do naufrágio. O comandante fecha-se na cabine entregando-se à morte. Jack (Leonardo DiCaprio) morre para que a mulher que ama se salve. O responsável pelo desenho do barco enfrenta o passar dos segundos e espera o fim. Cal (Billy Zane), o burguês triste, suicida-se anos mais tarde por desgraça e falência. Adicionalmente, as ligações entre as duas épocas são sempre pontes que partem das marcas do presente para se constituírem como revelações do passado, dos destroços aos olhares enrugados. A memória torna-se assim um mundo habitável, ligado ao presente como fantasma. Os fanáticos das verosimilhanças têm em Titanic um óptimo objecto de trabalho. Como é possível o aparecimento de Les Demoiselles d’Avignon, pintado em 1907 por Pablo Picasso, com uma dimensão totalmente incorrecta? E a tatuagem no braço esquerdo de Kate Winslet, impensável numa menina de alta sociedade em 1912? Mais do que subversão, há uma tentativa de através de um excesso simbólico forçar a que o modelo romântico seja um ponto de partida e não um ponto de chegada. A espessura ganha a partir dessa matriz diz respeito ao imaginário próprio do cinema de Cameron. A título de exemplo, basta pensar como mais uma vez há uma transferência entre as personagens masculinas e femininas: as mulheres detêm a força, são elas que combatem, salvam e sobrevivem, a Sarah Connor de Exterminador Implacável (The Terminator, 1984) e principalmente de Exterminador Implacável 2: O Dia do Julgamento (Terminator 2: Judgement Day, 1991), a Ripley de Aliens: O Recontro Final (Aliens, 1986), a Lindsey de O Abismo (The Abyss, 1989), a Rose deste filme. E esta força da mulher é acompanhada pela crescente fragilidade e impotência dos homens. Titanic sublinha a presença da máquina, na tentativa de expor o espectáculo. Denunciando a construção, o realizador define um programa estético em que a reconstituição minuciosa é entendida como uma origem e não como um exercício com valor por si. Através de fotografias e relatos, Cameron recriou algumas das cenas mais discretas e mais intensas: um rapaz brinca quando Jack passa a fronteira de classes; perante o pânico, um padre reza, a banda toca, e os oficiais perdem a calma. A estória criada é o maior elemento de transfiguração dessa verdade original. O acidente, de facto, transforma-se no chamado obstáculo do melodrama clássico, aquilo que provoca a separação do casal. É nesta perspectiva que devem ser entendidas imagens como aquela em que o navio está na vertical, com o par romântico no topo a conduzir o ponto de vista. Toda a construção formal, dramática, e expressiva de Titanic é a apoteose da ficção como meio de repensar as marcas e os vestígios. Nada disto é estranho no cinema de um cineasta que três anos antes assinou um filme como A Verdade da Mentira (True Lies, 1994), onde havia um labor sobre o cinema como fabricação. Nesse filme, exactamente quando as cenas eram mais inverosímeis e inacreditáveis é que o cinema assumia todo o seu poder criador, toda a sua complexidade. Depois das proezas espectaculares desse filme, Titanic volta a definir o artifício como propriedade interior. Ajudados pelo olhar arqueológico do cineasta, os longos e complexos movimentos de câmara que cercam o navio desenham uma dimensão epicamente eterna para o amor entre Rose e Jack. Demonstram também a escala e o desejo deste empreendimento, numa inextrincável ligação que une esses dois aspectos. A água é aqui a imagem da natureza como agente da morte e da desordem. A mise-en- scène acumula sinais que antecipam o desastre. Rose escorrega, fica em perigo, e um plano picado desvenda a desmedida força do mar, intensificada com a espessura sonora. É também semelhante à memória pela sua profundidade e fluxo. Cristalino, transparente, negro, o oceano é um cemitério vivo. O essencial apoia-se no cruzamento da estatura individual e colectiva do romance e da tragédia, tendo o tratamento do espaço uma importância central. A pulverização narrativa, os ritmos e os paralelismos da montagem, os travellings da sequência do naufrágio confirmam isso. Titanic divide-se e confunde-se entre o espectacular e o íntimo. O espectáculo da intimidade: o passado a ganhar vida para ser sepultado na escuridão. E a intimidade do espectáculo: a proximidade da morte que devolve a singularidade a cada pessoa. Este é o filme onde tudo isto é dado em espectáculo, onde os amantes abraçados gritam o seu amor e a sua liberdade numa proa, da qual talvez se veja o mundo inteiro no horizonte. A sensação pode parecer breve, mas é assim que a eternidade pode ser ganha. [01.09.2018, orig. 02.11.1998]