Prazer, Camaradas!


Prazer, Camaradas!, real. José Filipe Costa. Portugal, 2019. DCP, cor e pb, 105 min.

Assistir a este filme é um prazer. A própria obra evoca o que aparece escrito numa parede nos primeiros minutos: “A cultura é a liberdade do povo.” Ora bem, a liberdade é mesmo o centro gravitacional de Prazer, Camaradas!, pois ela implica o desejo de libertação e o gozo de ser livre, o antes e o depois, sendo que esta sequência pode ser baralhada. O tempo, especialmente o tempo da revolução, não é linear.José Filipe Costa tinha revisitado a Revolução de Abril em Linha Vermelha (2011). A ocupação da herdade da Torre Bela em 1975 foi filmada pela equipa de Thomas Harlan. 35 anos depois, este documentário voltava à obra marcante de Harlan para investigar os bastidores e falar com participantes. Era um filme analítico sobre a memória, incluindo sobre a disputa ideológica em torno do 25 de Abril e do seu significado político, cada vez mais intensa. Debruçava-se sobre as fissuras do tempo que abrem possibilidades de ligações entre períodos históricos e permitem que comuniquem, isto é, que alguns dos seus elementos sejam postos em comum. Em Prazer, Camaradas!, este tempo fissurado é assumido como central. Trata-se de uma docuficção, uma obra cinematográfica híbrida que se situa entre o documentário e a ficção, mantendo-se fiel à matéria factual de base, mas dramatizando os eventos ocorridos. Neste caso, o filme regressa a episódios passados em 1975. Eduarda, João, e Mick viajaram do norte da Europa rumo ao sul de Portugal para trabalhar numa cooperativa e clínica instalada numa quinta ocupada em Aveiras de Cima, Azambuja. Vieram trabalhar na agricultura e na pecuária, dar consultas médicas e de planeamento familiar, mostrar filmes de educação sexual, dançar nos bailes tradicionais. Eram jovens e vieram participar na revolução. A narrativa do filme foi construída a partir dos registos deixados por cooperantes. O francês Francis Pisani e a alemã Helga Novak escreveram livros sobre as suas experiências. José Rabaça e Eduarda Rosa deixaram diários. Essas fontes e outros documentos dão um retrato denso das vivências nas cooperativas. No filme, estas personagens jovens deambulam por ruínas e, depois, vão-se instalando num dia-a-dia que exige reflexão. São interpretadas por actores e actrizes não profissionais, com idades entre os sessenta e os setenta anos, num processo aberto à improvisação e ao avivar das memórias. Em cada uma delas vemos em simultâneo o presente e o passado: a idade que têm e a idade que interpretam, o tempo actual e o tempo do processo revolucionário. Nesse sentido, a estrutura conceptual de Prazer, Camaradas! é verdadeiramente dialéctica, produzindo uma síntese que perspectiva tanto a história do que aconteceu como a história do que está a acontecer. O passado ainda está presente, ainda é presente. O olhar do realizador sustem a atenção aos detalhes significativos, inscritos através de um cuidadoso trabalho cenográfico e de figurinos. A encenação cria um jogo de espelhos que liga cada estória à história, num vai e vem. Os embates culturais surgem desde o início. Quem chegou de fora tem dificuldade em lidar com o trato afectuoso do povo português. Sobram perguntas da parte dos “camaradas do norte”. Escasseiam as respostas dos “camaradas do sul”, porque as suas relações em interrogação e transformação, nomeadamente de problematização e superação de formas de desigualdade que afectam as mulheres. As mulheres não participam tanto nas decisões como os homens, mas governam a casa. Às mulheres cabem tarefas domésticas às quais os homens se esquivam, mas essa situação é alterada. É incutido nas mulheres que não têm direito ao prazer, nem sequer a saber o que é a sexualidade, mas também isso muda. Uma das virtudes do filme é não contrapor a suposta “sofisticação” das mulheres estrangeiras ao hipotético “atraso” das mulheres portuguesas. As primeiras encontram nas segundas uma força que dizem não ter. Descobrem também a brejeirice de algumas. Evita-se, sobretudo, o simplismo superficial. Daí as questões de género aparecerem ligadas às de classe. E se há tensões, há igualmente cumplicidades entre mulheres e homens, entre portugueses e estrangeiros. A não perder este ousado e imaginativo hino à liberdade da revolução que termina em festa — como deve ser, portanto. [09.06.2020]