A Metamorfose dos Pássaros (2020)


A Metamorfose dos Pássaros, real. Catarina Vasconcelos. Portugal, 2020. DCP, cor, 101 min.

O que pode a poesia? O que pode no cinema? A Metamorfose dos Pássaros, a premiada primeira longa-metragem de Catarina Vasconcelos, responde assim: é capaz de criar formas magnéticas de atenção e imaginação, fulgurantes de beleza. Henrique e Beatriz casaram-se. Henrique estava quase sempre no mar, como Oficial da Marinha. Beatriz ficou em terra, a cuidar das plantas, a enraizar os seis filhos. O filho mais velho, Jacinto, é o pai da realizadora. Sonhava ser um pássaro. O filme alarga esse sonho a toda a família, olhada como um bando de aves que vão mudando, passeando pela terra, vagueando pelo mar. Beatriz deu a alma a Deus sem aviso. Catarina não a conheceu. Henrique perdeu a esposa. Jacinto perdeu a mãe. A mãe da cineasta faleceu mais tarde, quando ela já tinha 17 anos. Nesse momento, pai e filha encontram-se na dor da perda — passam, no fundo, a irmãos no luto, personagens alimentadas de lembranças, visitadas por fantasmas. A uma vida povoada de espectros corresponde um filme espectral. Manuel Gusmão sublinhou em diversas ocasiões o carácter dialógico da poesia na aventura comum de ser humano. Este documentário biográfico e ensaístico apresenta-nos um denso itinerário de dois lutos que se desdobram num longo luto, é precisamente uma conversa entre pessoas, sustentada por sentimentos e emoções intrincadas, estruturada em torno de objectos, lugares, e presenças. Os rostos, os gestos, as peças, os instantes, e as paisagens concentram intensas ligações entre tempos. As palavras são a expressão de sucessivos actos de tacteamento. As vozes que as fazem ouvir, complementam-se, contestam-se, interrompem-se, sobrepõem-se, numa polifonia viva que o filme constrói através da composição de monólogos que dialogam. A vida define-se e decide-se no confronto com a morte. A originalidade de A Metamorfose dos Pássaros não é o resultado de um esforço para ser diferente. É o fruto de uma sensibilidade apurada desde Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso (2013). Quem viu e ouviu essa curta-metragem repara na continuidade, mas também reconhece um tom mais singular, uma encenação mais burilada, uma montagem mais evocativa. Para quem tem esse conhecimento anterior, esta obra mais recente pode eventualmente ser menos surpreendente, mas não será menos deslumbrante. Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso partia da correspondência entre o irmão da realizadora e ela no aniversário da morte da mãe. Ao descobrirem a história da família, desvendavam a história do país, em particular, do período da Revolução de Abril. Este cruzamento prolonga-se em A Metamorfose dos Pássaros. É ao espelho que a memória regressa. O sol afunda-se no mar e ouvimos Catarina dizer: “A minha mãe está nas minhas gargalhadas, nas minhas sardas, e na incapacidade de fazer planos. A mãe está na Reforma Agrária.” O luto itinerante é pontuado por mapas. Alguns são reais e registam as viagens de Henrique. Outros são imaginários e reflectem a deambulação das personagens. Medem-se distâncias, não só entre Henrique e Beatriz, mas entre outros membros da família, separados no espaço, no tempo, e, por vezes, nas convicções (Beatriz não compreende a posição de Jacinto contra o colonialismo português). Procura-se um distanciamento, um recorte que favoreça a contemplação e a consideração. Como a própria documentarista explicou: “Existem coisas neste filme que não aconteceram bem assim. Mas podiam ter acontecido.” Por exemplo, o pai de Catarina não se chama Jacinto, mas Henrique, tal como o seu pai. Podia ser confuso ter duas personagens com o mesmo nome. No entanto, mesmo com um nome diferente, há um jogo de reflexos entre os pais como entre as mães. Tudo isto é revelado, como quem diz um segredo que pode ser partilhado. Os enquadramentos fixos compõem quadros e traçam coordenadas. As cortinas de boca de cena assumem a dialéctica entre o natural das paisagens e o produzido da arte. O olhar é cenografado. No fim, sobre o ecrã preto, ouve-se Beatriz acompanhada dos filhos como uma aparição que dispensa a imagem. A função principal das imagens ao longo do filme é evocar o passado, mais do que torná-lo presente. É o cruzamento entre as vozes e as imagens que o torna presente, vivido de novo, dando A Metamorfose dos Pássaros a forma de um álbum de família. Daí a brecha a meio do filme: do ecrã branco surge uma fotografia do nascimento da cineasta, a mãe a agarrar na recém-nascida, ainda apoiada noutras mãos, aproximando-a de si. É o momento em que Catarina passa a ter mais destaque. Os lugares habitados, como a casa e o jardim, são substituídos por locais onde a organicidade vegetal abriga e se alastra. Os planos abrem-se. A performatividade das cenas intensifica-se. A intimidade permanece. [21.10.2021]