O Garoto de Charlot, real. Charles Chaplin. EUA, 1921. 35mm, pb, 68 min.
Uma das obras-primas de Charlie Chaplin faz 100 anos e regressa numa esplendorosa nova cópia restaurada em 4K. É uma oportunidade imperdível para (re)encontrar O Garoto de Charlot e o cinema terno e humanista de Chaplin. O comediante nasceu em Londres em 1889 e cresceu num bairro pobre. Emigrou para os EUA em 1913. A sua infância vincou e enraizou a perspectiva de classe que encontramos na sua obra. Formado na tradição da pantomima inglesa, adaptou-se às convenções do cinema mudo, inicialmente inspirado pelo cómico francês Max Linder. A sua personagem mais famosa apareceu pela primeira vez na curta-metragem Charlot Fotogénico (Kid Auto Races at Venice, 1914). Charlot é um homem paupérrimo, que vive na rua e de forma errante. Usa chapéu de coco, uma pequena bengala flexível, e roupa desajustada ao seu corpo, esfarrapada, recolhida do lixo. Exibe um pequeno bigode. Anda de forma desengonçada. Tem um jeito ingénuo de ser cavalheiro. Em inglês, era conhecido como “The Tramp” (“O Vagabundo”), que dá título a um filme seu de 1915. Como escreveu o marxista e historiador de cinema Georges Sadoul, “Charlot é um Max na miséria que procura comicamente conservar a dignidade”. Ao reivindicar a dignidade humana, expõe ao ridículo certas figuras que usam o seu poder e a sua posição para perpetuarem uma ordem social indigna. A popularidade de Chaplin foi acompanhada pelo reconhecimento da crítica. O Garoto de Charlot foi a sua primeira longa-metragem e um dos sucessos mais estrondosos da sua carreira nesses dois planos, juntando a sua graça expressiva como mimo ao seu rigor criativo como realizador. É uma comédia com notas de tragédia. Está logo no primeiro intertítulo: “Um filme com um sorriso — e, talvez, uma lágrima.” Ou seja, trata-se de um filme que não tem receio da complexidade das emoções intensas. Com evidentes ecos autobiográficos, narra a história de uma criança abandonada que é acolhida, com alguma resistência, e cuidada por Charlot. O retrato do quotidiano desvenda uma realidade social muito estratificada, entre o mundo abastado da mãe (Edna Purviance) que deixa o filho por ser ilegítimo e o mundo desfavorecido onde Charlot cria o garoto. A mãe arrepende-se da decisão, mas a inferioridade da moral da sua classe, que guiou a sua escolha, fica patente. O adulto e a criança são pequenos criminosos que partem vidros para os arranjarem a troco de dinheiro. Apoiando-se no amor que os une, encontram formas inventivas de viver com alguma dignidade no exíguo e impróprio apartamento onde moram. A mestria do realizador no uso de composições visuais em profundidade e na precisão dos enquadramentos para tornar a acção mais densa é notável. Os corpos e os rostos têm uma enorme expressividade, em particular na interpretação de Chaplin e do inesquecível Jackie Coogan que faz de miúdo. A fantasia surge como a outra face da realidade, não como o seu contrário — daí Charlot acabar como um anjo caído numa delirante sequência-sonho. Os sorrisos vêm da solidariedade entre os marginalizados. As lágrimas vêm das contrariedades a que estão sujeitos. O final deixa claro que os laços criados não são suficientes para derrubar as barreiras sociais. A raiz do problema é o capitalismo como sistema socio-económico desigual, assente nas mercadorias de troca, na propriedade privada dos meios de produção, na exploração do trabalho assalariado, na acumulação de capital. Por isso, quinze anos mais tarde, o operário Charlot pega numa bandeira vermelha em Tempos Modernos (Modern Times, 1936). [09.12.2021]