O Ano da Morte de Ricardo Reis (2020)


O Ano da Morte de Ricardo Reis, real. João Botelho. Portugal, 2020. DCP, cor e pb, 129 min.

A transmissão na RTP da mini-série 1936 - O Ano da Morte de Ricardo Reis, realizada por João Botelho, está anunciada para 2022. Antes desta obra televisiva em cinco episódios, foi lançada em 2020 uma versão para cinema com o título homónimo do romance de José Saramago que lhe serve de base, publicado em 1984. O filme está disponível gratuitamente na plataforma digital RTP Play, onde há muitas preciosidades para descobrir. O Ano da Morte de Ricardo Reis tem uma raiz longínqua na vida do escritor. No fim da adolescência, Saramago teve uma experiência que o marcou. Nessa altura, leu algumas odes de Ricardo Reis e pensou que existia, de facto, um poeta com esse nome. Não sabia que se tratava de um dos heterónimos de Fernando Pessoa. Mesmo depois de saber, Reis acompanhou-o por muitos anos. Alguns dos seus poemas exerceram sobre ele uma forte inspiração de vida e conduta. Por exemplo, “Para ser grande, sê inteiro: nada / Teu exagera ou exclui. / Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No mínimo que fazes.” São versos de uma das odes mais conhecidas de Reis, datada de 1933 — que, como Saramago observou, está em contradição com a autoria fragmentária de Pessoa. O romance foi adaptado ao ecrã pelo próprio realizador. O livro começa com três frases em epígrafe, um delas de Reis, que é uma “declaração a que apetece chamar monstruosa”, como disse uma vez Saramago: “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo.” A segunda frase, de Bernardo Soares, outro heterónimo de Pessoa, reafirma um alheamento do mundo, uma redução da condição de quem escreve a mero espectador — um alheamento e uma redução que são impossíveis. Por último, a terceira frase, de Pessoa, é um elogio do poder da ficção, deixando em aberto a sua relação com a realidade histórica. O filme preserva a centralidade destas questões, mas encena-as como obra fílmica que é. Reis (Chico Díaz) chega a Lisboa em 1936, portanto, no ano seguinte ao da morte do seu criador. Pessoa aparece-lhe porque a relação entre os dois é umbilical. Na sua diferença, um não existe sem o outro, um alimenta o outro. O filme encena esta aparição como uma reverberação da assombração de Reis em relação à realidade, povoada de nevoeiro, chuva, vidros molhados, cortinas, espelhos, e outros elementos que mediam ou turvam. A fotografia a preto e branco é mais uma componente estética que caracteriza a realidade como remota e nebulosa. O formato largo da imagem que Botelho volta a utilizar depois de Peregrinação (2017), adaptado do livro homónimo de Fernão Mendes Pinto, ganha aqui um sentido diferente. Aquilo que dava forma visual à grandiosa câmara de ecos do filme anterior, torna-se em O Ano da Morte de Ricardo Reis numa maneira de tecer o fechamento da personagem com a abertura ao mundo. Esta obra opta assim por composições descentradas nas quais o vazio que envolve Reis pode sempre ser preenchido - e é, por Pessoa, por duas mulheres com quem se envolve, por outras personagens com quem se cruza. Reis é, a pouco e pouco, apanhado pela inescapável teia do mundo. Tem de enfrentar a censura e a propaganda nos jornais, a denúncia de conhecidos, o cerco da polícia política, a ligação direta entre o fascismo português e o nazi-fascismo, e a violência dos anti-republicanos em Espanha. Num momento espantoso, perto do fim, imagens dos horrores da Guerra Civil Espanhola são projectadas sobre a cabeça de Reis, de olhos fechados, punhos junto ao rosto, encolhido na cama. Abre os olhos, espantado, ainda com o som audível dos disparos e das explosões, como que libertando-se da ilusão. Está pronto para morrer como uma personagem na história. [17.02.2022]