O Homem Duplicado, real. Denis Villeneuve. Canadá/Espanha/França, 2013. DCP, cor, 91 min.
O Homem Duplicado foi o segundo romance escrito por José Saramago depois de receber o Nobel da Literatura em 1998. O primeiro tinha sido A Caverna. O Homem Duplicado foi publicado em 2002 e desenvolve uma narrativa em torno de um professor de história que vê um filme e descobre um homem igual a si no ecrã. O encontro entre o professor e o actor torna-se inevitável, mas é difícil saber o que esperar. Volvidos cinco anos sobre a publicação, o escritor esclareceu numa entrevista o cerne do livro: “Actualmente, no mundo, entre ‘eu’ e o ‘outro’ há distâncias e não é possível superar essas distâncias, e, por isso, o ser humano cada vez consegue menos chegar a um acordo. As nossas vidas são compostas em cerca de 95% pela obra dos outros. No fundo vivemos num caos e não existe uma ordem aparente que nos governe. Então a ideia-chave no livro é que o caos é um tipo de ordem por decifrar. Com este livro proponho ao leitor que investigue a ordem que existe no caos.” Muitas epígrafes que abrem as obras de Saramago pertencem a livros que não existem. São, eles próprios, elementos ficcionais. É o caso de uma das epígrafes de O Homem Duplicado — “O caos é uma ordem por decifrar.” do inventado Livro dos Contrários —, à qual o escritor deu especial relevo. Tão importante como a frase parece ser o título do livro imaginário, como se caos e ordem fossem enquadrados como contrários, mas a proposta fosse entendê-los dialecticamente. Decifrar é entender um sentido complexo. Em 2013, o cineasta canadiano Denis Villeneuve dirigiu uma adaptação do livro. Embora o título do filme em Portugal seja O Homem Duplicado, o título original é Enemy (Inimigo), fugindo à tradução para inglês do romance, The Double (O Duplo), e chamando a atenção para o conflito do ser, as sombras da identidade. Havendo outras pequenas alterações, como o nome das personagens, a obra fílmica conserva o essencial do livro e potencia-o como cinema. Isto é particularmente verdade em relação à tensão psicológica do drama, encenado num ambiente árido, onde a mínima vibração humana se destaca. Na altura da estreia, Villeneuve chamou a atenção para a importância da paisagem urbana opressiva que vem directamente do livro. A megalópole descrita em detalhe nas páginas do livro, que parece evocar as grandes cidades da América do Sul, é uma “espécie de monstro”, um misto de “tensão, paranóia, ansiedade” que resulta do seu tamanho desmedido. Toronto é filmada assim no filme. Jake Gyllenhaal interpreta os dois papéis de forma meticulosa: o professor Adam e o actor Anthony, fisicamente idênticos, mas com personalidades distintas. Mélanie Laurent e Sarah Gadon desempenham as suas companheiras, personagens-chave neste universo. Isabella Rossellini faz de mãe. O filme venceu cinco prémios nos Canadian Screen Awards, incluindo realizador (Villeneuve), actriz num papel secundário (Gadon), fotografia (Nicolas Bolduc), montagem (Matthew Hannam), música original (Danny Bensi e Saunder Jurriaans), tendo sido nomeado para mais cinco distinções, incluindo argumento adaptado (Javier Gullón). Contrariando leituras superficiais, Saramago descreveu O Homem Duplicado como um livro “engajadíssimo”. O filme também o é. O seu minimalismo formal sublinha os elementos precisos de um ser e uma identidade em crise, indissociáveis de um mal-estar social, historicamente cíclico, com ecos existenciais, mas também com uma raiz civilizacional. [21.04.2022]