A Ilha dos Amores, real. Paulo Rocha. Japão/Portugal, 1982. 35mm, cor, 169 min.
A valorização do cinema do português é sempre uma boa notícia. A distribuição de A Ilha dos Amores de Paulo Rocha em Portugal é uma dessas notícias, um acontecimento marcante na nossa vida cultural. O filme pode ser (re)descoberto numa esplendorosa cópia restaurada no laboratório do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM) da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. Teve origem numa digitalização em 4K a partir de um exemplar em 35mm de um laboratório japonês em 1996. A correcção de cor foi feita usando como referência uma cópia de 1982. Trata-se de um filme sobre Wenceslau de Moraes, escritor português interpretado de forma vibrante por Luís Miguel Cintra que passou a segunda metade da sua vida na Ásia Oriental. Nascido em Lisboa em 1854, viria a falecer no sul do Japão, na cidade de Tokushima, em 1929. Em 1885, Moraes partiu para Macau como oficial da Marinha. Desencantado com a situação política e social em Portugal, não voltou a regressar. Rocha interessa-se, acima de tudo, pelo encontro entre um homem ocidental e a cultura oriental, diferente mas não necessariamente estranha, na qual se depara com uma arte de viver que equilibra o material e o espiritual. Num momento em que o conflito cultural é incentivado pelas forças dominantes do capital, esta obra lembra-nos que a diversidade cultural nasce da história dos povos e é uma riqueza que requer uma apreciação humanista. A Ilha dos Amores está dividido em nove cantos como se fosse uma epopeia íntima. O trabalho de encenação cinematográfica é, sobretudo, realizado no interior de planos-sequência com uma duração longa e contemplativa. Como explicou o cineasta: “Havia um tipo de sentimentos que não cabiam no plano normal, que pediam uma maneira larga, uma escala ‘grande’. Havia também o desejo de que cada plano correspondesse a uma espécie de absoluto, de verdade total sobre um sentimento, uma situação na vida, um determinado tipo de local.” O argumento foi escrito pelo realizador, mas os diálogos em português e japonês são da autoria de Luiza Neto Jorge e Sumiko Haneda. O filme contou com contributos artísticos e técnicos sólidos na fotografia, no som, na música, na montagem, na direcção artístico e no guarda-roupa, que fazem sobressair continuidades e descontinuidades entre as partes da narrativa que se desenrolam em Portugal e no Japão. A influência do cinema japonês na obra de Rocha é notória logo na sua segunda longa-metragem, Mudar de Vida (1966), passada na zona de arte xávega do Furadouro, em Ovar. Não é apenas o modo como filma a vida humana enquadrada pelos elementos da natureza, mas também a força das personagens femininas, reminiscentes dos filmes de Kenji Mizoguchi. A ligação do cineasta à cultura japonesa precede em muito a sua ida para o Japão como adido cultural em 1975. Verdade seja dita, o projecto de A Ilha dos Amores tem raízes ainda na década de 1960. Apoiado no primeiro plano de produção do Instituto Português do Cinema em 1974, a complexa rodagem do filme em dois continentes só começou em 1978. Esta obra marcante do cinema português foi originalmente apresentada no Festival de Cannes em 1982 e nunca estreou comercialmente em Portugal — apenas no Japão e em França. A cópia restaurada agora acessível foi mostrada na secção Cannes Classics na 71.ª edição do Festival de Cannes, em 2018. Pode ser vista em sala, mas foi também lançada em DVD numa edição conjunta da Midas Filmes e da Cinemateca Portuguesa. A Ilha dos Amores vem acompanhado em sala e em DVD de A Ilha de Moraes (1984), documentário rodado por Rocha em 16mm que se volta a focar em Moraes, neste caso explorando documentos e lugares e estabelecendo um diálogo frutuoso com o filme anterior. [15.06.2022]