A Nossa Terra, O Nosso Altar (2020)


A Nossa Terra, O Nosso Altar, real. André Guiomar. Portugal, 2020. DCP, cor, 88 min.

A Nossa Terra, O Nosso Altar, primeira longa-metragem documental de André Guiomar, fez um longo percurso por festivais até chegar às salas de cinema portuguesas no fim de Julho de 2022, apenas em Coimbra e no Porto. Recebeu nove galardões, entre os quais o Prémio do Júri da Juventude no ZINEBI - Festival Internacional de Documentário e Curta-Metragem de Bilbau. Merecia ser visto noutras cidades do país, em Lisboa e não só, mas estas dificuldades de distribuição e exibição são demonstrativas dos desafios costumeiros que o cinema português enfrenta. Além disso, trata-se de uma obra de duas pequenas produtoras portuenses, a Olhar de Ulisses e a Cimbalino Filmes, com apoio público à finalização do Instituto do Cinema e do Audiovisual e suporte do Centro de Criatividade Digital, estrutura da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, onde os membros da equipa estudaram. Do Doclisboa ao Sheffield Doc/Fest, dentro e fora de Portugal, o filme levou dentro dele a comunidade de um lugar: uma das três torres do Bairro do Aleixo que restava de pé em 2019, depois do início da demolição em 2013. O filme capta um fortíssimo espírito de pertença a esse lugar no Porto, junto ao rio Douro. É a esse espírito que o título alude, utilizando dois versos parciais do “Fado da Sé”, que um dos últimos habitantes deste bairro social escuta: “Via a ponte, a nossa terra / Via a Sé, o nosso altar”. É José Ferreira, invisual, que ouve a canção na rádio, uma das poucas companhias que ainda lhe restam. Em breve, imperará o silêncio. A opção política de Rui Rio e Rui Moreira para o Bairro do Aleixo procurou assegurar um terreno valioso para a especulação imobiliária, mesmo que isso implicasse expulsar e desalojar famílias que tinham construído quase toda a sua vida naquele local. Uma alternativa digna e célere de habitação tardou para essas pessoas, olhadas muitas vezes como descartáveis, marginais, associadas ao crime e à droga, simplificando uma realidade mais complexa e retirando-lhe humanidade. O consumo de droga nas zonas deterioradas e desabitadas aparece nas margens no filme, visto à distância. No centro de A Nossa Terra, O Nosso Altar estão as vivências dos habitantes, resgatadas ao esquecimento. O bairro poderá desaparecer, mas o cinema pode fazer perdurar a sua memória de quem nele viveu. Nos 88 minutos de duração do filme, é possível sentir os cerca de seis anos de convívio, entre 2013 e 2019, que foi criando um laço forte entre quem filmava e quem era filmado. Esse vínculo íntimo afugenta o sensacionalismo. Nasce em grande parte do olhar atento que o filme lança sobre cada momento de vida, mas também da resposta disponível dos habitantes do Aleixo, conscientes da presença e do poder da câmara, numa reciprocidade que se assemelha a uma encenação partilhada. Um dos momentos mais altos desta aliança é quando, prestes a abandonar o edifício à demolição que se avizinha, muitos moradores tentam apagar as marcas de habitabilidade através de uma espécie de pré-demolição. Às tantas, Luísa Ferreira, uma das residentes de saída, escreve uma frase lapidar na parede para que a câmara o capte: “Os pobres não têm direito a olhar para o rio”. A meio, o tempo avança seis anos, marcando o regresso às filmagens em 2019 depois da morte de Israel, que aparece logo na cena de aniversário que abre o filme. Ao longo do tempo de produção, algumas pessoas saem, outras morrem, acompanhando a desagregação da comunidade. A montagem rigorosa dá a conhecer a geografia do lugar, mas também mostra a sua decomposição. As posições da câmara repetem-se, mas o cenário vai mudando, esvaído de movimento, com marcas do passado e portas emparedadas. A beleza de A Nossa Terra, O Nosso Altar vem do modo como nos mergulha num viver popular intenso e inteiro, desde a sequência da festa no início, comunhão de corpos molhados e emoções à flor da pele, permanecendo nessa proximidade até ao fim. [11.08.2022]