Accattone (1961)


Accattone, real. Pier Paolo Pasolini. Itália, 1961. 35mm, pb, 117 min.

Accattone foi a estreia na realização de Pier Paolo Pasolini. O interesse de Pasolini pelo cinema era antigo. Na adolescência queria estudar cinema, mas tal não veio a acontecer. Pasolini chegou ao cinema relativamente tarde na sua carreira artística, com quase 40 anos, depois de já ter o nome firmado como escritor e intelectual. Conhecido como poeta, tinha publicado o seu primeiro romance em 1955, Rapazes da Vida (Ragazzi di vita), e um outro em 1959, Uma Vida Violenta (Una vita violenta), que se passavam nos bairros habitados por gente do sub-proletariado em Roma e retratavam as duras e precárias condições de vida em que viviam, à margem do que então era descrito como um boom económico italiano. Pasolini começou a colaborar na escrita de argumentos em especial para filmes herdeiros do neo-realismo como Noite Brava (La notte brava, 1959), que desenvolviam narrativas nesse mundo periférico e pobre cuja representação começava a escassear nos ecrãs. Como marxista, Pasolini adoptava uma clara posição de classe pelos explorados e marginalizados da sociedade italiana. Isso não quer dizer que o seu cinema seja uma obra guiada pelo protesto político. Isso seria simplificar o que é complexo. Accattone estreou em 1961 no Festival de Veneza e dividiu as opiniões na altura. E a esta distância, face a um filme tão comentado e hoje tão apreciado, podemos dizer que nenhum dos grupos que se degladiaram nessa altura tinha razão, tendo em conta os argumentos que utilizaram. Por um lado, os detratores condenaram sumariamente o filme como uma afronta aos valores conservadores que dominavam cada vez mais a vida pública italiana. O filme era incómodo porque mostrava, precisamente, o mundo que ainda existia em Itália e que as classes mais afluentes queriam eliminar, ou, no mínimo, esconder — um mundo selvagem e violento, reminescente da cultura camponesa, longe da urbanidade cosmopolita, um mundo que apesar de tudo resistia. E esta bolsa de resistência tinha um valor único para Pasolini, porque estava a fazer frente ao avanço da cultura de consumo capitalista, que para ele correspondia a uma profunda alteração antropológica, a uma mudança irreparável do próprio sentido da existência humana. Para ele, estas obras eram, portanto, uma espécie de trabalho etnográfico sobre uma cultura viva, com raízes profundas em Itália. Por outro lado, os admiradores elogiaram Accattone pela sua suposta filiação no neo-realismo, cujo período histórico já tinha chegado ao fim em meados da década de 1950 — talvez por isso tivesse havido a necessidade de falar de um neo-neo-realismo. A aproximação que alguma crítica de cinema fez do filme de Pasolini ao neo-realismo tinha a ver com elementos como a condição social “baixa” das personagens principais, a utilização de locais de filmagem reais e de actores não profissionais, e a autenticidade, a força quase directa de muitas das cenas. Há pelo menos dois problemas com este foco. Primeiro, esses são traços superficiais associados ao neo-realismo, que aliás não encontramos em todos os filmes do movimento, veja-se o caso paradigmático e muito discutido de Viagem a Itália (Viaggio in Italia, 1954) de Roberto Rossellini — paradigmático e muito discutido, precisamente por isso, por exigir uma reflexão sobre a definição do neo-realismo como projecto artístico. Segundo, a importância dada a estes traços ignora os aspectos em que Accattone se afasta claramente do neo-realismo. Estes argumentos reflectem a dificuldade em enquadrar o cinema único de Pasolini. Bernardo Bertolucci, que foi assistente de realização no filme e seria um importante cineasta italiano nas décadas seguintes, disse: “Ao ver Pier Paolo filmar Accattone senti que estava a presenciar a invenção do cinema.” Se Pasolini reinventou o cinema foi também porque tinha uma certa distância em relação a essa arte e até um desconhecimento da forma usual de a fazer. Esta situação deu-lhe margem para entender o cinema de um modo muito próprio, ligando-o a outros campos artísticos (como a literatura, a música, a pintura) e a outras linhagens estéticas (como o maneirismo). Para atalharmos caminho, é preciso reconhecer, sem negar a influência do neo-realismo, que esta primeira longa-metragem de Pasolini é uma obra lírica de tons religiosos e existencialistas, densamente composta em camadas num estilo anti-naturalista, já dentro dos vectores estéticos que o seu “cinema de poesia”, como ele lhe chamou, irá desenvolver posteriormente, misturando elementos que podem parecer díspares. Por exemplo, dois desses elementos surgem logo no início, ainda antes de mergulharmos na realidade dos bairros pobres nas periferias de Roma. No fim do genérico inicial, muito clássico, o filme oferece-nos uma citação de A Divina Comédia de Dante Alighieri — da segunda parte do poema, dedicada ao “Purgatório”, mais concretamente da secção V sobre o “Alto Purgatório”, morada transitória das almas das pessoas que amaram em excesso. A passagem é sobre uma alma que ascende ao céu por causa de uma pequena lágrima sincera. Também será na morte que Accattone se encontra, é nesse momento que “está bem”, depois de uma vida em que esteve quase sempre mal, em risco permanente. Ou seja, o destino de Accattone, pode ser lido precisamente a partir destes versos de Dante, embora Pasolini talvez não seja tão peremptório como Dante. Ao longo do genérico inicial ouvimos também a música sacra de Johann Sebastian Bach, que será um elemento recorrente ao longo do filme. De resto, a junção de elementos procede a partir do abalo de dicotomias, entre a comédia e o drama, a alta e a baixa cultura, ou entre o erudito e o popular, entre o cristão e o pagão, entre o profano e o sagrado. Abalar estas dicotomias não é negar a diferença entre os termos, significa antes trazer estes termos como contradições para o centro do cinema, colocá-los em comunicação na narrativa da existência humana, situado num espaço e num tempo concretos. Concluindo, Accattone faz um retrato da subclasse urbana em Roma que os olhares turísticos não viam. Na verdade, só na parte final do filme é que surgem imagens mais reconhecíeis da cidade, quando os protagonistas se deslocam para o centro urbano. O fim da personagem aparece, aliás, ligado a esse deslocamento, como se aquele não fosse o lugar dele. Segundo Pasolini, o filme tentou captar através destas personagens socialmente desprezadas, muito imperfeitas, capazes de coisas terríveis e de coisas generosas, que falam como profetas, são aocmpanhadas por anjos, tratam os santos como familiares, benzem-se muitas vezes à sua maneira, “uma força do passado, mais moderna do que qualquer modernista”. Numa entrevista a Oswald Stack publicada em 1969, Pasolini desenvolve esta ideia. Falando sobre a sequência do sonho de Accattone, Pasolini explica que se trata de uma visão da personagem sobre a sua existência que é “épica-mítica-fantástica”, sem nenhuma das características típicas da pequena burguesia. Há uma resposta de Pasolini nessa conversa que diz ainda mais sobre esta sequência, sobre a personagem, e sobre o mundo que o cineasta procurou retratar, com uma forte ligação à citação de Dante que abre o filme. Diz ele: “A burguesia substituiu o problema da alma, que é transcendental, pela consciência que é uma coisa puramente social e mundana. A projecção metafísica que Accattone faz da sua própria vida num mundo além é mítica e popular; não é pequeno burguesa, é pré-burguesa. […] O catolicismo em Accattone ainda retém as características pré-burguesas, pré-industriais e portanto míticas que são típicas do povo.” E é claro que podemos de imediato estabelecer relações entre este comentário e os filmes que Pasolini dirigiu depois, em particular a O Evangelho Segundo São Mateus (Il vangelo secondo Matteo), feito 3 anos depois, a obra de um ateu com uma “sensibilidade cristã” como ele disse uma vez. É que isso, sendo outra história, não deixa de ser a mesma história. [16.10.2022]