Women Talking (2022)


A Voz das Mulheres, real. Sarah Polley. EUA, 2022. DCP, cor, 104 min.

“O que se segue é um acto de imaginação feminina”, lê-se no ecrã antes de A Voz das Mulheres mostrar longas filas de mulheres para votarem. Usando tranquilizante de gado, vários homens tinham subjugado e violado raparigas durante a noite numa colónia menonita. Um dos homens é apanhado e denuncia outros. Os agressores são presos, depois de serem atacados pelas mulheres. A maioria dos homens exige às mulheres que perdoem ou que abandonem a comunidade. Elas decidem colocar à votação como devem responder: ceder à exigência e nada fazer, ficar e ripostar, ou sair por vontade própria. Na votação, a primeira opção (de perdão forçado) é rejeitada. As restantes duas serão discutidas longamente por um grupo de mulheres na função de delegadas. A Voz das Mulheres adapta ao cinema o livro homónimo da canadiana Miriam Toews inspirado nos abusos sexuais de mulheres, raparigas, e crianças na Bolívia. As agressões ocorreram entre 2005 e 2009 na Colónia de Manitoba, de uma denominação menonita, com raízes no movimento cristão anabaptista surgido na Suíça no século XVI. Sarah Polley, autora de Longe Dela (Away from Her, 2006) e Notas de Amor (Take This Waltz, 2011), escreveu um premiado argumento adaptado e realizou o filme. Trata-se de uma obra dramática profundamente humanista que não exclui o riso, quer para aliviar o peso da decisão, quer para fortalecer a solidariedade e a empatia. As subtis interpretações de Rooney Mara como Ona, Claire Foy como Salome, Jessie Buckley como Mariche, Judith Ivey como Agata, Sheila McCarthy como Greta, e Frances McDormand como Scarface Janz, contrapõem diferentes sensibilidades, vivências, e pontos de vista. Duas adolescentes, Autje e Neitje, respectivamente interpretadas por Kate Hallett e Liv McNeil, começam por brincar à margem da discussão na qual as suas mães, Mariche e Ona, participam. A pouco e pouco vão sendo enredadas no processo colectivo de deliberação. Escolhas de encenação como esta enriquecem aquele que é essencialmente um filme de câmara, porque a sua narrativa desenvolve-se quase exclusivamente no celeiro onde as reuniões decorrem. Este não é um espaço fechado, mas de concentração dos olhares da comunidade e de abertura para a paisagem que se estende além da colónia. Ben Whishaw interpreta um homem jovem, vindo de uma família expulsa devido ao questionamento da sua mãe, mais tarde reintegrado na comunidade como professor dos rapazes, os únicos com acesso à educação. Cabe-lhe lavrar as actas das reuniões, para guardar e transmitir a memória registada do processo. Nettie (August Winter), depois de ser violada e engravidada e perder a criança, passa a identificar-se como Melvin. Não fala. Só se sente seguro com as crianças, cuidando delas enquanto as mulheres debatem. A presença de uma personagem masculina e outra transgénero, e a tensão e o companheirismo que a acompanham, demonstram que a questão crítica não é o mero confronto entre homens e mulheres, mas o combate à opressão patriarcal e à violência do machismo. A educação para o respeito e a igualdade tornam-se fundamentais. O filme examina como a religião pode ser usada para agrilhoar, em vez de libertar, as pessoas. No entanto, A Voz das Mulheres não encaminha as personagens para uma renúncia simplista das suas convicções religiosas, descartando o essencial enquanto retêm o supérfluo por zelo excessivo ou despropositado. Pelo contrário, o debate é denso e complexo, lúgubre e alegre, a resolução é apaziguadora, porque as mulheres partem dos fundamentos da sua fé, aprofundando-os — em especial o princípio da não-violência. Karl Marx fechou as Teses sobre Feuerbach (1845) com a ideia de que não basta interpretar o mundo, é preciso transformá-lo. Nesta obra cinematográfica subjaz a ideia de que a imaginação por si só também não é suficiente, é preciso que ela esteja ligada à acção emancipadora. [20.04.2023]