Trás-os-Montes (1976)


Trás-os-Montes, real. Margarida Cordeiro e António Reis. Portugal, 1976. 16mm, cor, 108 min.

Para muitas pessoas, este costuma ser o primeiro contacto com o cinema de António Reis e Margarida Cordeiro. Pode ser um choque. Um choque, no bom sentido, porque o cinema desta dupla não se parece com nenhum outro. O mínimo que se pode dizer sobre Trás-os-Montes é que se trata de um filme muito original, “um fresco, uma gesta do Nordeste” na descrição do próprio realizador. O filme é uma espécie de tecido bordado, entre um olhar etnográfico, que procura desvendar a cultura profunda das comunidades transmontanas, e um olhar poético, que busca uma imersão no concreto das paisagens e dos lugares. É com grande liberdade que o filme combina histórias pessoais e familiares com depoimentos sobre estas comunidades minguantes, por causa do êxodo e do despovoamento, da pobreza e das mortes nas minas, por exemplo. Ao mesmo tempo, convoca lendas e mitos que passaram como um fio de magia de geração em geração e que são recreados no filme pelos habitantes de um conjunto de aldeias entre as cidades de Bragança e Mirando do Douro. O próprio quotidiano é recreado, num processo de auto-consciência que permite que as muitas pessoas que participaram nesta obra olhassem para si e para a comunidade a que pertenciam. Sem a disponibilidade delas o filme não existiria. Sem a sensibilidade e generoridade de Margarida Cordeiro e António Reis, Trás-os-Montes não seria a obra marcante que é. [13.10.2024]

Passagem ou a Meio Caminho (1980)


Passagem ou a Meio Caminho, real. Jorge Silva Melo. Portugal, 1980. 16mm, cor, 85 min.

A primeira longa-metragem de Jorge Silva Melo tornou-se um filme raramente encontrado, um objecto quase invisível, ao contrário de uma obra sua feita oito anos depois, Agosto (1988). Passagem ou a Meio Caminho (1980) foi apresentado publicamente pela primeira vez no Festival de Cinema da Figueira da Foz, onde foi acolhido de forma fria, distanciada, para desilusão de um autor que se dirigia à sua geração, e não chegou a ter estreia comercial. Rodado em 16mm e contando com um extenso conjunto de colaborações artísticas, o filme parte da vida e obra de Georg Büchner, escritor e dramaturgo alemão do século XIX. O foco é o espírito revolucionário de Büchner, mas é sobretudo a vivência e o confronto desse espírito com um mundo em convulsão. Na verdade, e como o próprio realizador indicava nas suas notas de produção, este não é um filme biográfico, mas de ficção, no qual Büchner surge como uma figura central no cruzamento de associações e contradições, num tom nostálgico e céptico. Passagem ou a Meio Caminho foi uma produção do Grupo Zero Cooperativa de Cinema, uma das cinco cooperativas que resultaram da fragmentação do Centro Português de Cinema após o 25 de Abril de 1974. Esta estrutura partilhava as instalações do Teatro do Bairro Alto em Lisboa com o Teatro da Cornucópia, fundado por Silva Melo e Luís Miguel Cintra. O Grupo Zero foi coordenado por Alberto Seixas Santos e Solveig Nordlund, que fez a montagem deste filme com Teresa Caldas. Não é uma mera coincidência que uma cooperativa de cinema tão dedicada ao registo e reflexão sobre diversas facetas do processo revolucionário português — a reforma agrária, as cooperativas de pescadores, e os processos de alfabetização — tenha produzido esta obra. Também é relevante mencionar que o filme foi, em grande parte, rodado n’A Voz do Operário, especialmente na sua biblioteca. Ou seja, desde logo pela produção e local de rodagem, este é também um filme sobre o Portugal de 1980 ou o rescaldo da Revolução do Cravos. O filme começa com uma tradução para português em off de um texto de Lilian Hellman sobre Dashiell Hammett em inglês. A voz apresenta várias soluções de tradução para algumas palavras e explica que leu essa passagem em 1968. Assim se lança a ideia de que há uma voz da narração, possivelmente autoral, situada no século XX e em Portugal. Traduzir, filmar, e montar são aqui meios de revelar e adicionar camadas. Passagem ou a Meio Caminho combina diversos tempos e lugares, e a relação entre Hellman e Hammet, a dificuldade da primeira em falar sobre o segundo, é semelhante à relação entre Silva Melo e Büchner: uma intimidade tão profunda que impede a escrita biográfica, permitindo apenas uma ficção (auto-)biográfica. A tensão entre o colectivo e o indivíduo, que atravessa o filme é indissociável da saída de Silva Melo da Cornucópia em 1979. O encenador chegou mesmo a dizer numa entrevista a Francisco Ferreira em 2013 que o filme lhe parecia, à distância, “narcisista, demasiado centrado numa dor pessoal”, embora já não o visse há muito tempo. Dizia ele que faltavam um interlocutor para Büchner, mas, em vez disso, há vários interlocutores como o teólogo revolucionário e o intelectual que pugna pela violência. Se várias vozes habitam e cercam a mente de Büchner, faz sentido que ele converse com várias personagens. Para indagar o sentimento de perda em relação ao impulso revolucionário, Passagem ou a Meio Caminho apresenta a palavra e a escrita como espaços onde a intimidade do ser se decide. Esta indagação toma uma forma fragmentária, palimpséstica, constelar, próxima dos escritos do filósofo marxista alemão Walter Benjamin, que muito influenciou Silva Melo. Em cada momento, sobressai uma pergunta: como lidar com o fracasso na juventude nesta aventura de dissabores, traições, e solidão? No filme, a nostalgia não é pelo passado, mas pelo futuro, e é nesta deslocação que surge uma inextinguível centelha de esperança. O fervor dos revolucionários é visto a partir de uma perspectiva crítica que expõe a dificuldade ou a crise do diálogo revolucionário, e portanto também a sua necessidade, em vez de pura e simplesmente negar a validade da ideia de utopia. A utopia não aponta para o lugar que não existirá, mas para o lugar que ainda não existe nem pode ser capturado. Em Passagem ou a Meio Caminho, rapidamente percebemos que a revolução não será filmada porque terá de ser vivida, parafraseando com alguns retoques uma canção do músico americano Gil Scott-Heron. É uma liberdade parecida e tão justa como a que encontramos neste filme de Silva Melo. [14.09.2024]

Gaza mon amour (2020)


Gaza, Meu Amor, real. Arab Nasser e Tarzan Nasser. Alemanha/França/Palestina/Portugal/Quatar, 2020. DCP, cor, 87 min.

Gaza, Meu Amor (Gaza mon amour, 2020), dirigido pela dupla Arab e Tarzan Nasser, teve honras de estreia no Festival de Cinema de Veneza. No Festival Internacional de Cinema de Toronto, venceu o Prémio NETPAC, a Rede para a Promoção do Cinema Asiático (Network for the Promotion of Asian Cinema), de melhor filme asiático. Foi co-produzido pela portuguesa Ukbar Filmes e rodado na Jordânia e em Portugal. A Palestina, a Alemanha, e a França completam a lista dos países co-produtores do filme. De qualquer modo, Gaza, Meu Amor é essencialmente um filme palestiniano. Daí o Ministério da Cultura Palestiniano o ter escolhido como submissão ao Óscar de Melhor Filme Internacional. O filme só estreou em Portugal em 2022. Hoje é difícil olhar para Gaza, Meu Amor sem ter em conta a actualidade. Não é apenas o facto de chegarem poucos filmes da Palestina a Portugal, além das obras de Elia Suleiman. É a realidade das ruínas e dos milhares de mortos e feridos que se acumulam na Faixa de Gaza. A verdade é que este conflito armado é indissociável da ocupação israelita de territórios palestinianos, do bloqueio de Gaza, da expansão de colonatos israelitas ilegais, e da violência dos colonos, sobretudo na Cisjordânia. Tudo isto está sempre presente em Gaza, Meu Amor, de forma mais directa ou indirecta, em primeiro plano ou em pano de fundo. O título do filme evoca claramente Hiroshima, Meu Amor (Hiroshima mon amour, 1959) de Alain Resnais, mais como referência vagamente temática do que cinéfila. Esse filme mostra um homem japonês e uma mulher francesa que se encontram até se separarem, num lugar marcado pela guerra: Hiroshima. Sobre ela e ele persiste a sombra da memória do bombardeamento atómico do Exército dos Estados Unidos nessa cidade, a 6 de Agosto de 1945, durante a Segunda Guerra Mundial. Persiste também a dificuldade em recordar. Pelo contrário, em Gaza, Meu Amor, o casal vai-se cruzando até um alegre desenlace final, quando o amor vem acompanhado de um riso contagiante. Issa (Salim Daw) é um pescador de 60 anos que nunca chegou a casar. A irmã não desiste de casar este homem religioso e traz grupos de mulheres para o visitarem como pretendentes. Issa, por sua vez, está apaixonado por Siham (Hiam Abbass), uma costureira viúva que vive com a filha divorciada. Issa e Siham sobrevivem através do seu trabalho. A pesca e a costura são dois sectores que enfrentam grande dificuldades em Gaza, onde muitas das pessoas vivem na pobreza, numa situação precária permanente, e em campos de refugiados. A ficção tem esta raiz concreta. O elemento mais inusitado da narrativa é, curiosamente, factual: em 2014, a rede de um pescador de Gaza apanhou uma estátua fálica do deus grego Apolo. É o mesmo que acontece a Issa em Gaza, Meu Amor e que faz com que a personagem ache que a sua sorte mudou. Vive sozinho. Tem de vender o peixe barato. O melhor amigo dele é um jovem comerciante que decide rumar à Europa em busca de um futuro melhor para si e a sua família. Talvez tudo venha a ser diferente depois da descoberta da estátua. A verdade é que o artefacto só lhe traz problemas, nomeadamente com as forças policiais. O filme vai cosendo pacientemente duas estórias basicamente paralelas, que se vão intersectando, mas que só convergem realmente no fim. Sobressai uma tristeza suave e uma ternura atenta que são o solo do qual pode despontar a alegria, no olhar do filme sobre Gaza e estas personagens. Apesar de tudo, o sofrimento não conseguiu asfixiar a humanidade neste lugar. [22.08.2024, orig. 06.2024]

As Águas de Sua Mãe (2013)


As Águas de Sua Mãe, real. Paulo Lima. Portugal, 2013. DCP, pb, 80 min.

A primeira figura que As Águas de sua Mãe nos oferece é das nuvens. Não provém de um olhar dirigido ao céu, de baixo para cima, mas de um olhar que parece sobrevoar as nuvens. Não se avista a terra nesta figuração do pleno céu. A primeira imagem sonora do filme é-nos oferecida ao mesmo tempo da primeira imagem visual: é o som das vagas do mar. É uma aparente dessincronia que, mesmo que não o seja, cria o efeito de um contraste entre o que se ouve e o que se vê. Vemos as nuvens, ouvimos o mar. Esta conjugação de imagens sobrepõe o céu e a água, o firmamento e o nascimento. Entramos, desde logo, no domínio do simbólico sem nunca abandonar o concreto. Ao longo da obra, a fotografia a preto e branco de Cláudia Ribeiro opta por tornar nítida a massa e acentuar o volume dos objectos filmados. As nuvens aparecem como aglomerados esculpidos, com partes iluminadas e partes em sombra. A música de André Silvestre adicionada ao som do movimento da maré é tocada em piano e assemelha-se a uma frase misteriosa sem conclusão. Notas conjuntas graves sucedem-se a notas sequenciais agudas, num diálogo, potencialmente interminável, entre a tensão e a serenidade. O canto é murmurado por duas vozes que se diluem. O tom liminar introduzido pela conjugação destas figuras com estes sons estende-se à cena que se segue e a todo o filme, com diversas nuances. Esta tonalidade prolonga-se, mas os elementos mudam de características. A luminosidade celeste inicial cede lugar a um interior escuro. Numa casa de paredes grossas e negras de xisto, Carolina (Carolina Pereira) dorme sobre um colchão de palha, escondendo a cabeça com o lençol branco. Ouvem-se ruídos da lida caseira. O isolamento de Carolina tem desde o início uma expressão figurativa e auditiva. Vê-se. Escuta-se. O mundo que ela conhece tem os limites do grande e denso bosque que circunda a casa, onde passeia e brinca de vestido quase imaculado para encontrar alguma liberdade. Recolhe e olha as folhas, toca e olha a vegetação, deita-se no celeiro na companhia de um jumento — demora-se e o filme com ela. Pelo meio, sobre uma panorâmica que percorre o cerrado conjunto de árvores, escutamos pela primeira vez as vozes do pai (Fernando Sena) e da mãe, Rosa (Manuela Penafria). Embora encadeadas, estas vozes correspondem a dois momentos diferentes na narrativa, igualmente distintos do passeio de Carolina. Inicialmente, escutamos o pai a caminhar, ofegante, e a chamar, alto, pela mãe. Rosa tinha fugido de casa e será esta fuga que faz com que Carolina se aventure além das fronteiras do que conhece. Depois, escutamos o nascimento da criança, o esforço da mãe e a sua exclamação “Vai nascer!” “Vamos”, diz o pai, secamente. A redução estilística de As Águas de sua Mãe a elementos escassos e nítidos não significa que a sua estrutura seja simples. A recusa na representação linear do espaço e do tempo é uma das marcas poéticas desta obra. Carolina diverte-se a brincar com o cabelo, move as mãos de forma enérgica e lúdica, e prefere a companhia do burro à dos pais. A convivial presença do asno oscila entre a respiração marcada e o guincho ouvido à distância. A última vez que este animal aparece, deambula livremente pelo campo aberto. A liberdade dele antecipa a liberdade dela. Antes disso, Carolina é mostrada de costas, à janela. A mesma janela que estava fechada no início está agora aberta de par em par. A câmara move-se para a direita, onde está pousada a sua cama na sombra do quarto. A luz aumenta de intensidade e ilumina os lençóis molhados. Ouve-se Rosa a rezar o terço do Rosário, repetindo a “Ave Maria”. “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amen.” A oração, de exaltação da maternidade divina e da robustez da virtude, permite-lhe meditar sobre a sua situação. O nome dela remete para a imagem do rosário como coroa de rosas, encadeamento de meditações que tomam a configuração de um jardim em flor. “Eu volto”, diz ela. O som da abertura da porta é seguido pelos ruídos do exterior. (Rosa não volta.) Quando a câmara regressa à janela aberta, já não se vê Carolina, mas apenas a paisagem luminosa, como se ela tivesse saltado do interior da casa para o exterior do bosque. A casa é uma prisão escura que parece nascer da terra. Um longo plano-sequência sinaliza o meio do filme, percorrendo toda a casa de forma circular como se não houvesse saída. Sem electricidade, fogão, ou água canalizada, a casa assemelha-se a uma visão de um tempo passado de penúria que perdurou. Antes do plano começar, Carolina está sentada à mesa, iluminada pela chama de uma lâmpada, a comer um cacho de uvas pretas e grandes. Olha pelo canto do olho para o casaco do pai. A tosse dele ecoa pelos quartos. Este plano de quase oito minutos começa, precisamente, por enquadrar o casaco do pai, depois uma porta entreaberta por onde se vê um altar com uma figura de Nossa Senhora e, em seguida, a mesa de jantar. Sobre a mesa, está um pequeno vaso estreito com flores mortas, ressequidas. Na transição do altar para a mesa, escutamos uma conversa entre Rosa e a sua filha:

ROSA: O teu pai foi à cidade e deve estar a chegar. Por isso, come depressa e vai para o quarto.
CAROLINA: Onde é a cidade?
ROSA: Eh... É muito longe.
CAROLINA: O que há?
ROSA: É muito feia.
CAROLINA: O rio vai para a cidade?
ROSA: O rio vai para o mar.
CAROLINA: Mar...
Ouve-se o mar e a câmara continua até à cozinha onde há uma fogueira viva, passando por um banco sobre o qual se encontra um pequeno rádio desmontado, e transita de novo pelo altar para terminar o movimento no vaso sobre a mesa. O vaso é a imagem da morte, da secura, de um mundo em decomposição. Carolina foi posta de parte e integrada no mesmo processo de deterioração. Foi-lhe negado o contacto com outras crianças. Só conhece os seus progenitores. Sobra-lhe a imaginação, como quando observa as sombras projectadas das suas mãos em moções de sucessivas formas. Ouvimos o pai questioná-la sobre onde esteve, se trouxe água, se foi à fonte — e mandá-la tirar a roupa molhada. A luz que projecta as sombras sobre um solo de hastes secas e ramos partidos vai perdendo intensidade até as sombras desaparecerem. Mais uma vez, o som inscreve um evento futuro na cena, dobrando e desdobrando o tempo. Sob o comportamento autoritário e opressivo do pai, encontramos uma oposição idealista entre a pureza da natureza, por um lado, e a decadência da civilização, por outro. Carolina entra em casa com o cântaro cheio e fixa o casaco do pai, pendurado junto à entrada. Um medo mudo perpassa por estes momentos. A violência do pai é sugerida, não só pelo olhar fixo dela, mas também pela sombra do pai que avança sobre ela mais tarde. No entanto, as palavras que ouvimos este homem dizer sobre a cidade, na parte final do plano-sequência, entre a cozinha e a mesa, mostram que também ele tinha medo: “Hoje não quero falar. É inútil pensar em voltar. Perigoso. [pausa] Fala-se de um fim do mundo. As pessoas vivem sobre o constante medo da morte. [pausa] Receio que matar seja uma forma de viver. Receio ter de fugir. Receio ser seguido e que vos levem de mim.” Estas frases são a resposta dele a uma simples pergunta de Rosa: “O que trouxeste?” Ele trouxe o medo. A casa é povoada por espectros que cercam a solidão da menina. O filme dá forma à ausência do pai e da mãe, reduzindo a presença deles às suas vozes. Ouvimo-los sem saber se estas frases vêm do passado distante ou recente, ecoando ainda naquelas paredes como se fossem assombrações. Mas há contrapontos a estas aparições dos mortos. Na cena seguinte ao plano-sequência, Carolina rega uma planta no celeiro, admirando a vida dos seus ramos e das suas folhas e passando a mão por elas como se este organismo vegetal fosse um animal doméstico. É a mesma planta que ela arranca pela raiz antes de partir. Esta pequena presença da vida — uma presença concreta que brota apesar de tudo, talvez contra tudo — contrasta com a grande presença da morte da cena anterior. Pouco depois, emergem cânticos religiosos do fundo ruidoso emitido pelo pequeno rádio, que assim ganham uma textura densa e irreal. A figura da santa está em primeiro plano, Carolina em segundo, diante do altar, e os tachos da cozinha em terceiro. Esta cadeia visual liga o papel alienante que a religião pode desempenhar à opressão doméstica feminina. Carolina encontra-se no meio dessa teia e quebra corajosamente um efeito mágico ao mexer no aparelho e pegar na figura para a abanar. Depois esconde-se ao lado da janela, ainda receosa. A polícia já ronda a casa à sua procura. Carolina dá o seu último passeio, transpondo pela primeira vez os confins do bosque. O vento forte curva a vegetação. Ela passa pelo corpo morto do pai, deitado sobre pedras ensanguentadas, e avança. Passa por colinas recortadas, por ladeiras despovoadas de árvores, por zonas onde o céu aparece agora destapado. A paisagem muda, a luz altera-se, a floresta é interrompida para a passagem da rede de eletricidade. A natureza e a civilização entrelaçam-se. Eis quando surge a auto-estrada. Ela assusta-se com o movimento rápido dos automóveis. A sua inquietação permanente endurece-lhe o corpo e paralisa-lhe a acção. O filme mostra isto através da paragem da imagem visual quando ela olha, simultaneamente curiosa e assustada, mantendo a sensação de movimento através do som do vento cortado pelos automóveis velozes e do cricrilar dos dos grilos que se continua a ouvir. Vê-mo-la depois junto à água, primeiro ao longe, depois de perto, a atirar pedras à água. Regressa a imagem do céu, com uma perspectiva diferente da inicial, agora de baixo para cima, mas acompanhada do mesmo som da corrente de água e da mesma música. Carolina foi além do que via, tentando descobrir, finalmente, para onde o corre o rio. O rompimento das fronteiras do lugar onde ela vivia é encenado como um regresso às origens que desconhecia. No fim, a Covilhã, a cidade de que Carolina, Rosa, e o pai falam ao longo do filme, aparece de forma contrastante. Ao percurso pelas rodovias desta cidade são juntados sons aquáticos borbulhantes, como que captando alguém a respirar debaixo de água. A última vez que vemos Carolina ela está deitada no banco de um transporte público, a espreitar de debaixo de uma manta que a tapa. Quem sabe se não vai a caminho da escola. Os sons ainda se ouvem durante alguns segundos e depois faz-se silêncio. Este momento derradeiro condensa diversas imagens. A água forte pela sua corrente e frágil pela sua maleabilidade são o espelho da força e da fragilidade de Carolina e da sua mãe. [19.10.2016]

Mandabi (1968)


Mandabi, real. Ousmane Sembène. França/Senegal, 1968. 35mm, cor, 92 min.

Mandabi é a segunda-longa metragem de Ousmane Sembène, produzida dois anos depois de La noire de… (1966), vencedor do Prémio Jean Vigo. O filme narra a estória de um senegalês muçulmano, Ibrahima Dieng, que vive com duas esposas, Mety e Aram, e sete filhos nos subúrbios de Dakar, no limiar da subsistência. Desempregado há quatro anos, Ibrahima recebe uma ordem de pagamento (mandabi) no valor de 25 mil francos de um sobrinho emigrado em França que trabalha como varredor de rua. O dinheiro seria para dividir por Ibrahima e a sua irmã, e guardar para o sobrinho, que o juntou do salário como varredor de rua em Paris. Ao tentar levantar o dinheiro, o analfabeto Ibrahima é confrontado com numerosos obstáculos. Mandabi foi galardoado com o Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza de 1968. Sembène foi um cineasta senegalês convictamente marxista. Numa entrevista a Guy Hennebelle em 1969, explicou: “O que é interessante para mim é expor os problemas que o meu povo teve de enfrentar. […] Considero o cinema principalmente como um instrumento político de acção.” No entanto, não lhe interessava fazer obras de propaganda política, mas filmes populares dirigidos às massas. Na sua filmografia, esta é a segunda adaptação fílmica de um texto literário seu. Tal viria a acontecer mais vezes, mas há dois elementos novos em Mandabi que permanecem nos filmes subsequentes: o uso da língua uolofe e da fotografia a cores. Depois da independência em 1960, o Senegal manteve o francês como língua oficial, embora o uolofe seja a língua franca e a mais falada no Senegal. Ao fazer filmes falados em uolofe, Sembène afirmava o seu compromisso com um realismo crítico que não soasse a falso. No caso de Mandabi, o francês é falado por burocratas e pessoas da classe mais abastada, à qual pertence outro sobrinho de Ibrahima, M’baye Sarr, um homem de negócios que não olha a meios para enriquecer, enganando até os familiares. Nos filmes anteriores, Sembène tinha optado pela fotografia a preto e branco. A partir de Mandabi, o cineasta filmou sempre a cores. A cor é um elemento estético de grande complexidade visual que o realizador não conseguiu integrar organicamente no seu cinema desde o início. Como explicou em entrevistas, ele considerava também que havia o risco de cair no folclórico. Ora, em Mandabi a cor é trabalhada para distinguir e caracterizar espaços, ambientes, classes, e personagens. Quanto mais o filme se afasta da casa da família de Ibrahima, mais desaparecem as cores vivas e os padrões tradicionais. Isso faz com que a presença deslocada de Ibrahima nos espaços urbanos e institucionais se torne mais notória. A interpretação de Makhouredia Gueye como este homem desnorteado, da periferia social, roça o burlesco. A preocupação com a aparência é transversal a várias personagens, mas em Ibrahima é conjugada com a afirmação máscula e o descontrolo sôfrego, a piedade e a presunção religiosas, e a compaixão e a ingenuidade. Na realidade pós-colonial do Senegal, ele é uma figura complexa e contraditória que representa quem ficou para trás, empurrado para a periferia social que o filme retrata. Tal como Ibrahima, a maioria do povo senegalês pertence a irmandades sufis. O sufismo, o misticismo islâmico, dá mais importância à prática do amor do que às regras religiosas. Ibrahima procura seguir esse caminho, sem a sabedoria, a humildade, e a responsabilidade das suas solidárias esposas. Assim, Mandabi subverte a proteção do homem em relação às mulheres como justificação para a poligamia. [21.05.2024]

Catembe (1965)


Catembe, real. Manuel Faria de Almeida. Portugal, 1965. 35mm, cor, 45 min.

Catembe pode finalmente ser visto nas salas de cinema, quase 70 anos depois. Foi recentemente digitalizado e restaurado com o apoio do Projecto FILMar da Cinemateca Portuguesa, no âmbito dos EEA Grants. É um objecto fundamental para entender os mecanismos de propaganda e censura da ditadura fascista em Portugal. O filme durava originalmente 87 minutos. O Ministério do Ultramar/Agência Geral do Ultramar impôs 103 cortes ao filme em 1965, que totalizaram cerca de 45 minutos, e ordenou a destruição dos negativos das partes cortadas. Depois deste processo e de uma única apresentação pública no cinema Império em Lisboa a 6 de Dezembro de 1965, a versão censurada acabou por ser proibida de estrear comercialmente em Fevereiro de 1966. Segundo a Comissão de Censura, não era “oportuna a sua exibição”. A produção do documentário tinha sido subsidiada pelo Fundo do Cinema Nacional, que visava divulgar as colónias portuguesas nos ecrãs de cinema. A proibição teve como contexto o alastramento da Guerra Colonial desde 1961, de Angola para a Guiné-Bissau e Moçambique, a região que o filme retrata. A cópia agora disponibilizada foi digitalizada e restaurada a partir do material original em 35mm e corresponde à versão censurada, com a duração de 45 minutos. O realizador Manuel Faria de Almeida conseguiu conservar parte dos minutos cortados da versão original e, em 2009, entregou à Cinemateca os 11 minutos de cortes que possuía. O material cortado pode agora ser analisado para entender a lógica do censor. A cópia sobrevivente de Catembe só pode ser descrita como um conjunto de restos de uma obra destruída pela censura do Estado Novo. Seja como for, podemos dizer que os traços gerais do filme sobreviveram. Numa declaração em 1963, o realizador dizia que pretendia combinar três narrativas. A primeira estaria centrada nas grandes construções e nos locais turísticos de Lourenço Marques. A segunda seria uma investigação sobre os habitantes da cidade e os seus pensamentos. A terceira combinaria o retrato da vila piscatória de Catembe com uma estória de amor vivida por uma rapariga com o nome da vila, que se desenrolava no clube de dança Luso, onde brancos e negros conviviam (como se pode ver nas cenas cortadas). Catembe é, assim, um documentário semificcionado que utiliza diversas opções estéticas para confrontar o espectador com a realidade na capital da colónia moçambicana, mas também com a visão da capital do império sobre Lourenço Marques, actual Maputo. O cinema directo é usado logo nas entrevistas da sequência de abertura nas quais o realizador pergunta sobre Lourenço Marques a quem passa pela Baixa de Lisboa. Outras parte do filme recorrem a entrevistas mais planeadas, com som síncrono sobre imagens em movimento e som assíncrono sobre imagens fixas. Há momentos ficcionados, como as cenas que envolvem as “bifas,” as raparigas inglesas. Há também momentos líricos com alguma carga erótica, como quando ouvimos o poema de amor de Mara Guimarães, lido por Manuela Arraiano, sobre as imagens de um casal a namorar na relva de um jardim. Catembe documenta o quotidiano de cada dia de uma semana em Lourenço Marques, mas no separador “Quinta-Feira / A Poesia da Outra Banda” há um desvio. O filme sai da cidade para outro destino, geograficamente próximo mas distante no ambiente: Catembe, “a vila poética do pescador do camarão ligada a Lourenço Marques pela ponte da imaginação”, uma “sugestão de lenda, de lenda ancorada na realidade”, como nos diz a voz-off. A importância dada ao retrato desta vila, que escapou ao cinema, como é dito no próprio filme, é reforçada pelo facto de dar título ao filme. Manuel Faria de Almeida tinha nascido em Lourenço Marques em 1957 e foi um dos fundadores do cineclube local. Estudou cinema em Londres. Estagiou no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos em Paris e trabalhou nos arquivos da Cinemateca Francesa. Além de ter sido um dos dinamizadores do Novo Cinema Português, foi presidente da Tobis Portuguesa entre 1974 e 1976 e do Instituto Português de Cinema entre 1976 e 1977. Parece claro que o projecto de Catembe era mostrar o que a ditadura queria esconder, furar a carapaça da propaganda, o que dá ao filme um tom fantasmático. O que vem de Lourenço Marques são fantasmas para assombrar a visão que o Estado Novo promovia sobre as colónias africanas. Como o próprio cineasta explicou: “Na verdade, eu sabia que a ideia que em Portugal se fazia de Moçambique era a dos negros com bandeiras na mão, em alas, deixando passar o Presidente da República, vestido de branco, brindado por papelinhos multicolores atirados das varandas. Ninguém sabia como as pessoas ali viviam, que pessoas, como pensavam elas, como se divertiam e quais os seus problemas. Era isto que eu queria mostrar, e pensava que as entidades oficiais tinham percebido a intenção.” Tanto perceberam a intenção que o filme foi irremediavelmente mutilado. [29.11.2023]

Sicilia! (1999)


Sicília!, real. Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Alemanha/França/Itália, 1999. 35mm, pb, 66 min.

Não se pode falar com alguma profundidade de Sicília! sem o colocar em contexto. Há pelo menos dois elementos que definem contextos precisos para este filme. O primeiro elemento é, obviamente, a obra de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet e a retrospectiva na Casa do Cinema Manoel de Oliveira e a exposição “Jean-Marie Straub e Danièle Huillet: Na Cratera do Vulcão” têm-nos oferecido este contexto. O segundo elemento é o filme de Pedro Costa, Onde Jaz o Teu Sorriso? (Où gît votre sourire enfoui?, 2001), que documenta a montagem da terceira versão de Sicília! Um dos temas que perpassa por Onde Jaz o Teu Sorriso? é o da relação entre a ideia, a matéria, e a forma. Logo no início do documentário, ouvimos Straub dizer: “Não espere pela forma antes do pensamento.” E Huillet replica: “A forma aparecerá ao mesmo tempo.” Na verdade, o cinema feito por ele e por ela nasce da relação dialéctica entre as estas duas posições. São duas posições que podem parecer excludentes, mas que correspondem a diferentes momentos da criação do filme ou até a diferentes entendimentos desse processo. A primeira posição salienta a independência e a sucessão das partes (primeiro a ideia, depois o seu confronto com a matéria, do qual resulta a forma). A segunda posição salienta a cooperação e a simultaneidade das partes (a ideia é refeita no confronto da matéria e desse refazer em confronto nasce a forma). A demonstração de que há uma relação dialéctica entre estas duas posição está no próprio filme de Pedro Costa, sobretudo nos momentos de decisão sobre a montagem do filme, que Onde Jaz o Teu Sorriso? mostra sequencialmente, começando com a cena inicial no porto e terminando na cena final centrada no amolador. Às tantas, Straub parafraseia Tomás de Aquino que, segundo ele, afirmou que “a alma nasce da forma do corpo,” acrescentando, bem-disposto, que, como este pensador era napolitano, sabia o que dizia. A frase do teólogo dominicano na Summa Theologica não é bem assim — é, na verdade, “a alma intelectual é a forma do corpo” —, o que altera o significado da afirmação e, mais uma vez, volta a chamar a atenção para a natureza dialéctica do processo de criação fílmica. Ora esta dialéctica que pode ser detectada no plano da expressão tem um vínculo com as convicções políticas que Sicília! corporiza. Esta longa-metragem é baseada em excertos de um romance anti-fascista de Elio Vittorini, Conversação na Sicília (Conversazione in Sicilia), publicado originalmente em parcelas na revista literária Letteratura entre 1938 e 1939. Nascido em Siracusa, Sicília, Vittorini assumiu-se inicialmente como um “fascista de esquerda.” Em 1937, portanto um ano antes de começar a escrever Conversação na Sicília, já a contradição insustentável dessa expressão estava exposta e Vittorini foi expulso do Partido Nacional Fascista, liderado por Benito Mussolini, devido a apoiar publicamente o lado republicano na Guerra Civil Espanhola. A partir dessa altura fez um percurso político na esquerda italiana, passando pelo Partido Comunista Italiano. Em Onde Jaz o Teu Sorriso?, Huillet explica que quiseram fazer este filme a partir do texto de Vittorini porque o leram em conjugação com a memória de um episódio que ocorreu em 1972. Nesse ano, Straub e Huillet andavam por Itália em busca de lugares para filmar Moisés e Aarão (Moses und Aron), dois anos depois. Percorreram lentamente milhares de quilómetros. Um dia, em cima de uma ponte, disseram um para o outro: “Que cheiro tão estranho. Não é desagradável, mas é muito intenso, que será?” E viram várias centenas de quilos de laranjas despejadas num rio. Ficou-lhes na memória. Quando leram o início de Conversação na Sicília, veio-lhes à mente esta recordação muito forte. Esta explicação deixa muito por explicar, como é evidente. Seja como for, introduz um tema central de Sicília!: a memória. Esta é a narrativa de um homem (interpretado por Gianna Buscarino) que regressa à sua terra de origem, depois de quinze anos a viver na cidade de Nova Iorque, dado biográfico que não consta no texto original, no qual a personagem regressa de Milão. O filme mostra uma série de encontros no decurso desta viagem, o mais longo destes encontros deste homem que se tornou estrangeiro é com a sua mãe, no município de Vizzini, província de Catania, na Região Autónoma Siciliana. Mais do que encontros, são, na verdade, reencontros. Ou seja, o homem cruza-se sempre com algo que conhece e reconhece, na porto, no comboio, e na cidade, mesmo que tal não pareça inicialmente e mesmo que esse (re)conhecimento surja misturado com algo que desconhece. A perspectiva revolucionária que molda o cinema de Straub e Huillet está em sintonia com esta noção de reencontro e com a sua valorização estética e política. Numa entrevista a François Albera, Straub foi bastante claro: “É preciso então voltar ao que diz Benjamin; a revolução também é ‘colocar em seu lugar coisas muito antigas, mas esquecidas’ (Péguy). Os filmes que nos fazem sentir isso são filmes políticos.” Em duas frases, o realizador convoca o filósofo marxista Walter Benjamin, o pensador católico Charles Péguy, e implica Huillet nesta visão, que ela não desmente. Como Jacques Rancière bem assinalou, a tradição revolucionária na qual Straub e Huillet se inscrevem rejeita o progresso cuja base seria o novo cintilante. Em vez disso, defende um desenvolvimento que implique uma ruptura com modos de viver e relações económicas de dominação e a preservação e a redescoberta do que se enraizou, um regresso à terra, à humanidade (re)integrada na natureza, aquilo a que estudioso de cinema Daniel Fairfax designa por “comunismo ecologista.” Em Sicília!, o homem que regressa tem dificuldade em lidar com tais paradoxos. Tal é manifesto, por exemplo, na discussão com a sua mãe sobre o seu avô, que ele não compreende como podia ser socialista e cristão, participando activamente na procissão de São José. As coisas antigas são tanto o arenque grelhado dessa sequência como a navalha que o homem passa ao amolador para afiar na sequência final. Sendo que nem todas as coisas antigas são dignas de preservação e valorização, como os dois oficiais de polícia sinistros que planeiam a repressão política no comboio. O estilo fílmico de Sicília! é altamente depurado, separando cada um dos elementos visuais e sonoros de forma cristalina. A representação opta pela “abstração teatral,” como Jean-Marie Straub a descreve no documentário de Pedro Costa: o texto é dito com pontuações rigorosas, complementadas com gestos lentos e marcados. Os enquadramentos salientam a profundidade do espaço, através de diversas linhas de perspectiva, o que faz com que cada imagem seja simultaneamente despojada e densa. Antes e depois do reencontro entre o homem e a sua mãe, o filme faz uso de um movimento de câmara que exemplifica estas opções e o seu valor artístico. Trata-se de uma panorâmica repetida três vezes ao longo de Sicília! que varre a paisagem de Vizzini até ao cemitério da cidade e depois faz o movimento inverso para se fixar no centro da cidade, ao longe. Antes do reencontro, este plano aparece duas vezes seguidas, a primeira ao nascer do sol, a segunda a meio do dia. Depois do reencontro, reaparece precisamente da mesma maneira, mas a meio da tarde. Para expressar a passagem cíclica do tempo, o filme convida-nos a contemplar as mesmas coisas por três vezes e a observar esta paisagem como um cenário da história humana que ali se tem desenrolado, reflectindo a marca da comunidade que nela reside, trabalha, e vive, com as suas delimitações, construções, e plantações, os seus acessos, e os seus mortos enterrados. Das várias montagens de Sicília! resultaram também duas curtas-metragens de 20012: O Viajante (Il viandante) e O Amolador (L’arrotino). No fundo, são obras que sublinham a importância central da montagem no cinema de Straub e Huillet como elemento determinante para a construção orgânica da forma fílmica. Deixo apenas breves observações sobres estes dois filmes. O Viajante foi construído a partir de um simples fragmento da parte final da sequência de reencontro entre o homem e a sua mãe. O primeiro plano começa exactamente com o plano aproximado da mãe quando ela fala sobre um verão terrível, depois de olhar para baixo, e a chegada de um viajante, olhando já para o filho. O último plano termina com último corte da sequência. Se a sequência integral em Sicília! oscila entre a evocação de um passado do qual o filho se lembra e um passado que ele esqueceu ou que nunca conheceu, O Viajante salienta mais o desconhecimento dele ao concentrar-se na história pessoal contada pela mãe sobre o viajante. Há vários momentos na longa-metragem, como aquele em que a mãe está junto à janela a falar sobre a montanha de onde partia a procissão de São José através das palavras e do olhar para o exterior, em que algo que não vemos é evocado. Em O Viajante, essa evocação joga de modo mais intenso com os olhares desencontrados das duas personagens, cada uma no seu espaço. A mãe a narrar e a lembrar-se. O filho a perguntar e a querer saber. O Amolador foi construído a partir dos planos que compõem a sequência final de Sicília!, entre o homem e o amolador. O primeiro plano é aquele que introduz o amolador na longa-metragem, mas ao contrário de O Viajante, o último plano de O Amolador não coincide com o de Sicília! Os últimos 30 segundos do plano foram cortados, tempo que corresponde a uma suspensão do movimento, quando o homem e o amolador permanecem na mesma posição, de pé, com os braços caídos. Esta fixidez e quietude rima com a cena inicial no porto, na qual Gianna Buscarino é visto de costas na metade esquerda do quadro, com um miúdo ao longe na metade direita. O movimento é mínimo até Buscarino rodar a cabeça para a esquerda para conversar com o vendedor de laranjas. Em vez do movimento do mar, o plano final tem o movimento das folhas das palmeiras. Ora esta rima só faz sentido na estrutura de Sicília!, pelo que o corte deste parte deste plano final é consistente com o isolamento desta sequência do resto da longa-metragem em O Amolador. [12.11.2023]

Hangmen Also Die! (1943)


Os Carrascos Também Morrem, real. Fritz Lang. EUA, 1943. 35mm, pb, 134 min.

Os Carrascos Também Morrem (Hangmen Also Die!, 1943) é um filme anti-fascista feito nos Estados Unidos, dois anos depois de o país ter entrado na Segunda Guerra Mundial. Pertence ao conjunto de obras que tentavam convencer o povo americano sobre a justeza desta participação. Olhemos apenas para o cinema popular americano, excluindo os filmes de propaganda como a série Why We Fight (1942-45), dirigida por Frank Capra e Anatole Litvak. Alguns filmes apresentavam a aliada União Soviética com simpatia aquando da invasão nazi, como Song of Russia (1944). Outros filmes narravam dramas no teatro de guerra, focados nas forças armadas americanas, como Guadalcanal Diary (1943) ou centrados noutros contextos, como Edge of Darkness (1943) sobre as forças de resistência norueguesas. No meio de todas estas obras, Os Carrascos Também Morrem é um caso singular. Foi realizado por um grande cineasta exilado, que tinha sido um dos nomes fundamentais do expressionismo alemão: o austríaco Fritz Lang. A sátira cómica tinha sido uma das vias no retrato dos nazis, através de filmes de realizadores emigrados como O Grande Ditador (The Great Dictator, 1940) do britânico Charles Chaplin e Ser ou Não Ser (To Be or Not to Be, 1942) do alemão Ernst Lubitsch. Neste filme, esse retrato é mais dramático e para isso concorre a música de Hanns Eisler, futuro compositor do hino da RDA, como elemento basilar. A crueldade nazi é evidente desde a primeira cena em que se discute a execução sumária de centenas de trabalhadores para esmagar os movimentos de boicote da produção nas fábricas, nomeadamente de material de guerra. Lang estrutura a tensão a partir dos espaços, das perspectivas, e das relações entre indivíduo e grupo, preferindo caracterizar subtilmente as personagens através de pequenos gestos. A narrativa foi inspirada no assassinato de Reinhard Heydrich, em 1942, o Protector da Boémia e Morávia, a região checa ocupada pelos nazis. Era o número dois da SS e foi um dos principais mentores do Holocausto. Era conhecido como o “carrasco de Praga”, daí o título do filme. A estória foi escrita por Lang e Bertolt Brecht. O guião ficou a cargo de John Wexley, membro do Partido Comunista dos EUA, argumentista mais tarde colocado na lista negra de Hollywood quando a perseguição aos militantes e simpatizantes comunistas se intensificou. Lang e Brecht reuniam regularmente para discutir ideias, com a participação de Wexley, que foi produzindo rascunhos do argumento a partir dessas sessões. A produção do filme teve alguns problemas, mas, ao contrário do que por vezes se diz, Brecht não o renegou. No essencial, ele ficou descontente com o facto de não ter sido creditado como argumentista e com a eliminação de várias cenas dos prisioneiros no campo de concentração, entre o editor, o operário ferroviário, o padre, o poeta, e o professor, criadas quase exclusivamente pelo dramaturgo alemão. Os diários de trabalho de Brecht publicados em 1973, assim como os comentários posteriores de Lang, mostram que o problema esteve sobretudo na aceleração da produção a partir de determinada altura e na necessidade de diminuir a duração do filme, que ainda assim tem 134 minutos. Não houve propriamente discordâncias políticas, mas algumas divergências estéticas. Os Carrascos Também Morrem acabou por ser o único filme americano com o nome de Brecht nos créditos, embora haja indícios de que tenha trabalhado noutros projectos realizados. Ele deixou os Estados Unidos pouco depois de testemunhar perante o Comité de Actividades Anti-Americanas. O poema escrito pelo operário aprisionado, “A Tocha Invisível”, tem claramente o cunho de Brecht. Começa com estes versos: “Caros patriotas, chegou a hora / Caros patriotas, há trabalho a ser feito / Levantem a tocha invisível e passem-na adiante / Mantenham-na acesa, mantenham-na acesa / avançando na estrada que não tem curva.” Fecha com um verso afirmativo: “Sem rendição!” (em inglês, “No surrender!”). Brecht queria que este fosse o título do filme, mas, segundo Lang, tal não aconteceu porque durante a rodagem foi lançado um livro com o mesmo título. Seja como for, o realizador encontrou outra forma de expressar a ideia de que, ainda que os nazis não tivessem sido derrotados, a resistência anti-fascista não desistiria desse objectivo. Antes do “The End” foi incluído um “Not” — “Not the End”, portanto, “Não é o Fim”. [08.11.2023]

Oppenheimer (2023)


Oppenheimer, real. Christopher Nolan. EUA/Reino Unido, 1943. 35/65mm, cor e pb, 180 min.

Numa entrevista, Robert J. Oppenheimer falava assim da Experiência Trinity, o primeiro teste de uma arma nuclear, conduzido nos Estados Unidos em 16 de Julho de 1945: “Esperámos até que a explosão passasse, saímos do abrigo e depois foi extremamente solene. Sabíamos que o mundo não seria o mesmo. Algumas pessoas riram, algumas pessoas choraram. A maioria das pessoas ficou em silêncio. Lembrei-me da frase da escritura hindu, o Bhagavad-Gita: Vishnu está a tentar persuadir o Príncipe de que ele deve cumprir o seu dever e, para impressioná-lo, assume a sua forma com múltiplos braços e diz: ‘Agora tornei-me a Morte, a destruidora de mundos.’ Suponho que todos nós pensamos isso, de uma forma ou de outra.” Há alguma controvérsia sobre o rigor desta tradução do Bhagavad-Gita. A tradução do sânscrito seria algo como “A morte sou eu, e a minha tarefa actual. / Destruição.” e é Krishna, um dos avatares de Vishnu, que o diz. Seja como for, o sentido transmitido pelo cientista está de acordo com o texto religioso. Esta citação é central no filme de Christopher Nolan, Oppenheimer. Trata-se de uma produção de grande escala que se ocupa de pequenos eventos, do encadeamento das suas causas e dos seus efeitos. O comentário do físico americano assume a mesma mudança de escala que molda a consciência. O mesmo é dizer que o valor desta obra não está no seu tema ou em qualquer mensagem sobre esse tema, mas no modo como o filme trabalha esse tema e o tema trabalha o filme. No âmago de uma narrativa sem centro, já que Oppenheimer não está presente em vários momentos mesmo estando ligado a eles, encontramos o projeto de criação de uma bomba atómica no contexto da Segunda Guerra Mundial, focado no desenvolvimento de material físsil para activar reacções nucleares em cadeia. A arma teria de comprimir uma esfera de plutónio uniformemente em todas as direções radiais, com elevada precisão. O mínimo erro resultaria num desequilíbrio de forças que não provocaria a implosão (método de activação usado na devastadora bomba lançada sobre Nagasaki, a 9 de Agosto de 1945). Através da montagem, do contraste visual e sonoro entre cenas curtas, e da sua interrupção, Oppenheimer transmite uma sensação permanente de desequilíbrio, volatilidade, instabilidade, com a fúria apropriada. A exploração séria que faz da história vai-se densificado, sempre à beira da destruição ou implosão, através da reconstrução de linhas narrativas entrelaçadas. Assim, o filme retrata a campanha anti-comunista em torno de Oppenheimer e das suas actividades políticas, o seu compromisso com o movimento sindical, a sua advertência sobre a corrida armamentista na Guerra Fria, a sua advocacia de organizações e acordos internacionais para controlar a energia nuclear, e a sua defesa da paz e do desarmamento. Em simultâneo, examina o idealismo de Oppenheimer, as suas cedências e convicções, e a sua ingenuidade face às maquinações de um poder dominador e militarista — por exemplo, a sua crença infundada de que a bomba seria apenas empregue como elemento dissuasor em vez de lançada duas vezes sobre o Japão pelo Exército dos Estados Unidos. Explicar um fenómeno é investigar a sua causa. No princípio, a causa parece completamente independente do efeito. No entanto, a dialéctica mostra que a causa é também um efeito e que a sua eficiência como causa depende de um complexo de condições que são causas e efeitos. Este entendimento da causalidade reconstrói as condições e as possibilidades numa rede intrincada de relações de causalidade que quebram a linearidade, tal como Oppenheimer expressa. A história humana não é linear, inclui avanços e recuos, vitórias e derrotas, mas isso não nega o encadeamento dos fenómenos históricos e sociais e a importância do contributo individual e colectivo para determinar o seu caminho. [12.10.2023]

I bambini ci guardano (1943)


“As Crianças Olham para Nós”, real. Vittorio De Sica. Itália, 1943. 35mm, pb, 85 min.

Perspectivamos e apreciamos os filmes sempre num contexto. Ora o contexto pode ser este: a ligação do filme “As Crianças Olham para Nós” (I bambini ci guardano, 1943) ao Papa Francisco. Tanto quanto eu sei, esta não é uma obra de cinema que ele tenha citado como favorita, como aconteceu com A Estrada (La Strada, 1954) de Federico Fellini, também incluído neste ciclo. Mas é uma obra cinematográfica que ele já mencionou num comentário no dia 25 de Março de 2017 durante uma visita pastoral a Milão. Nessa ocasião, Francisco falou da relevância da família no desenvolvimento da fé, enfatizando a necessidade de transmitir um bom exemplo aos filhos, que observam quem os gerou ou adoptou como um modelo de comportamento. Cito o que ele disse: “Os nossos filhos olham continuamente para nós; mesmo quando não nos damos conta, eles observam-nos o tempo todo e entretanto aprendem.” Recordando especificamente o filme de 1943 de Vittorio de Sica como uma “uma verdadeira ‘catequese’ de humanidade”, ele afirmou o seguinte: “As crianças olham para nós, e vós não imaginais a angústia que um filho sente quando os pais discutem. Elas sofrem! E quando os pais se separam, são elas que pagam as consequências. Quando derdes um filho ao mundo, deveis ter a consciência disto: nós assumimos a responsabilidade de levar esta criança a crescer na fé.” A ideia é que quando as crianças sofrem psicologicamente e, por vezes, fisicamente, na família como acontece neste filme, não crescem na fé. O filme mostra isto, mas vai mais longe e mais fundo. Veremos como, mas penso que o próprio Papa tem noção disso quando acrescentou na audiência: “As crianças conhecem as nossas alegrias, as nossas tristezas e preocupações. Conseguem captar tudo, dão-se conta de tudo e, considerando que são muito intuitivas, chegam às suas conclusões e tiram as suas lições.” Podemos perguntar então: que lição tira o menino Pricò, interpretado de modo intenso por Luciano de Ambrosis? Para responder a esta questão é preciso entender o projecto estético do filme, isto é, a sua filiação no neo-realismo italiano, do qual é um dos primeiros exemplos em conjunto com Obsesssão (Ossessione) de Luchino Visconti, estreado no mesmo ano. Olhando com atenção para o filme percebemos nem era preciso esperar por Viagem em Itália (Viaggio in Italia, 1954) de Roberto Rossellini para que pudesse eclodir uma polémica crítica em torno da associação do neo-realismo italiano apenas às imagens dos pobres e abandonados, uma forma de fechar a definição do neo-realismo italiano na categoria social das suas personagens, em vez de abrir a definição a um olhar sobre o irredutível de uma fatia da realidade, seja ela qual for, como fez André Bazin. Não eclodiu essa polémica nem outra, porque o lançamento deste filme foi prejudicado pelo contexto da Segunda Guerra Mundial e depois viria a ser como que esquecido como contributo de De Sica face ao posterior Ladrões de Bicicletas (Ladri di biciclette, 1948) e até a Umberto D. (1952), no período pós-guerra. A família retratada não é abastada, mas vive bem, pode pagar férias numa estância balnear e tem uma queixosa empregada a tempo inteiro que tudo faz para proteger uma criança enredada numa triste sucessão de abandonos. Quando Francisco fala numa “‘catequese’ de humanidade” penso que quer dizer que De Sica filma as tensões e as contradições das personagens sem as julgar, expondo aquilo que nelas é humano, a sua alegria e o seu desânimo, as suas decisões e os seus impasses. No livro A Arte de Viver em Deus: A Imaginação Cristã para Elevar o Real, o frade dominicano Timothy Radcliffe escreve o seguinte: “Nada de humano é estranho a Cristo.” De modo semelhante, nada do que é humano é desinteressante para o neo-realismo italiano, mesmo quando não há grandes acontecimentos ou incidentes. Daí as cenas mais dramáticas ganharem um sentido trágico, porque efectivamente elas rasgam a lisura anterior. É através de pequenos gestos que o filme vai tecendo uma delicada trama de acções e expressões de sentimentos. Como é comum no neo-realismo, o filme demora-se em momentos que podem parecer insignificantes, mas que dão corpo à existência das personagens. Um aspecto adicional que me chamou a atenção e que certamente interessará ao Papa é o modo como este filme, na sua forma própria, já prefigura o cinema da incomunicabilidade que vamos encontrar mais tarde na obra de Michelangelo Antonioni. A mise-en-scène do filme está rigorosamente estruturada a partir de momentos e espaços onde a comunicação podia acontecer, mas não acontece, vedada por interrupções, afastamentos, portas fechadas, e elipses. O destino de cada personagem parece ser a solidão. Então que lição tira o menino Pricò? O mais interessante é que ele parece chegar à fé precisamente porque a família desistiu dele… Há muitos caminhos para a fé e o Papa não desmente isso, mesmo destacando a transmissão da fé na família. Quando, no colégio católico, choroso, o menino se afasta e se separa, choroso, a composição em profundidade, com a câmara baixa à altura dele como em muitos momentos do filme, expressa algo diferente do peso deste gesto tão dramático: expressa a sua pequenez e vulnerabilidade num mundo povoado de adultos. O pequeno Pricò aceita a sua condição de órfão com uma força que não é propriamente dele e que só posso descrever como fé, se com essa palavra quisermos designar um conjunto de coordenadas, uma cartografia da dúvida que permite a alguém dar um passo decisivo, mesmo que não decidido, num mundo volúvel, agressivo, pleno de incertezas. [01.08.2023]