As Águas de Sua Mãe, real. Paulo Lima. Portugal, 2013. DCP, pb, 80 min.
A primeira figura que As Águas de sua Mãe nos oferece é das nuvens. Não provém de um olhar dirigido ao céu, de baixo para cima, mas de um olhar que parece sobrevoar as nuvens. Não se avista a terra nesta figuração do pleno céu. A primeira imagem sonora do filme é-nos oferecida ao mesmo tempo da primeira imagem visual: é o som das vagas do mar. É uma aparente dessincronia que, mesmo que não o seja, cria o efeito de um contraste entre o que se ouve e o que se vê. Vemos as nuvens, ouvimos o mar. Esta conjugação de imagens sobrepõe o céu e a água, o firmamento e o nascimento. Entramos, desde logo, no domínio do simbólico sem nunca abandonar o concreto. Ao longo da obra, a fotografia a preto e branco de Cláudia Ribeiro opta por tornar nítida a massa e acentuar o volume dos objectos filmados. As nuvens aparecem como aglomerados esculpidos, com partes iluminadas e partes em sombra. A música de André Silvestre adicionada ao som do movimento da maré é tocada em piano e assemelha-se a uma frase misteriosa sem conclusão. Notas conjuntas graves sucedem-se a notas sequenciais agudas, num diálogo, potencialmente interminável, entre a tensão e a serenidade. O canto é murmurado por duas vozes que se diluem. O tom liminar introduzido pela conjugação destas figuras com estes sons estende-se à cena que se segue e a todo o filme, com diversas nuances. Esta tonalidade prolonga-se, mas os elementos mudam de características. A luminosidade celeste inicial cede lugar a um interior escuro. Numa casa de paredes grossas e negras de xisto, Carolina (Carolina Pereira) dorme sobre um colchão de palha, escondendo a cabeça com o lençol branco. Ouvem-se ruídos da lida caseira. O isolamento de Carolina tem desde o início uma expressão figurativa e auditiva. Vê-se. Escuta-se. O mundo que ela conhece tem os limites do grande e denso bosque que circunda a casa, onde passeia e brinca de vestido quase imaculado para encontrar alguma liberdade. Recolhe e olha as folhas, toca e olha a vegetação, deita-se no celeiro na companhia de um jumento — demora-se e o filme com ela. Pelo meio, sobre uma panorâmica que percorre o cerrado conjunto de árvores, escutamos pela primeira vez as vozes do pai (Fernando Sena) e da mãe, Rosa (Manuela Penafria). Embora encadeadas, estas vozes correspondem a dois momentos diferentes na narrativa, igualmente distintos do passeio de Carolina. Inicialmente, escutamos o pai a caminhar, ofegante, e a chamar, alto, pela mãe. Rosa tinha fugido de casa e será esta fuga que faz com que Carolina se aventure além das fronteiras do que conhece. Depois, escutamos o nascimento da criança, o esforço da mãe e a sua exclamação “Vai nascer!” “Vamos”, diz o pai, secamente. A redução estilística de As Águas de sua Mãe a elementos escassos e nítidos não significa que a sua estrutura seja simples. A recusa na representação linear do espaço e do tempo é uma das marcas poéticas desta obra. Carolina diverte-se a brincar com o cabelo, move as mãos de forma enérgica e lúdica, e prefere a companhia do burro à dos pais. A convivial presença do asno oscila entre a respiração marcada e o guincho ouvido à distância. A última vez que este animal aparece, deambula livremente pelo campo aberto. A liberdade dele antecipa a liberdade dela. Antes disso, Carolina é mostrada de costas, à janela. A mesma janela que estava fechada no início está agora aberta de par em par. A câmara move-se para a direita, onde está pousada a sua cama na sombra do quarto. A luz aumenta de intensidade e ilumina os lençóis molhados. Ouve-se Rosa a rezar o terço do Rosário, repetindo a “Ave Maria”. “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amen.” A oração, de exaltação da maternidade divina e da robustez da virtude, permite-lhe meditar sobre a sua situação. O nome dela remete para a imagem do rosário como coroa de rosas, encadeamento de meditações que tomam a configuração de um jardim em flor. “Eu volto”, diz ela. O som da abertura da porta é seguido pelos ruídos do exterior. (Rosa não volta.) Quando a câmara regressa à janela aberta, já não se vê Carolina, mas apenas a paisagem luminosa, como se ela tivesse saltado do interior da casa para o exterior do bosque.
A casa é uma prisão escura que parece nascer da terra. Um longo plano-sequência sinaliza o meio do filme, percorrendo toda a casa de forma circular como se não houvesse saída. Sem electricidade, fogão, ou água canalizada, a casa assemelha-se a uma visão de um tempo passado de penúria que perdurou. Antes do plano começar, Carolina está sentada à mesa, iluminada pela chama de uma lâmpada, a comer um cacho de uvas pretas e grandes. Olha pelo canto do olho para o casaco do pai. A tosse dele ecoa pelos quartos. Este plano de quase oito minutos começa, precisamente, por enquadrar o casaco do pai, depois uma porta entreaberta por onde se vê um altar com uma figura de Nossa Senhora e, em seguida, a mesa de jantar. Sobre a mesa, está um pequeno vaso estreito com flores mortas, ressequidas. Na transição do altar para a mesa, escutamos uma conversa entre Rosa e a sua filha:
ROSA: O teu pai foi à cidade e deve estar a chegar. Por isso, come depressa e vai para o quarto.
CAROLINA: Onde é a cidade?
ROSA: Eh... É muito longe.
CAROLINA: O que há?
ROSA: É muito feia.
CAROLINA: O rio vai para a cidade?
ROSA: O rio vai para o mar.
CAROLINA: Mar...
Ouve-se o mar e a câmara continua até à cozinha onde há uma fogueira viva, passando por um banco sobre o qual se encontra um pequeno rádio desmontado, e transita de novo pelo altar para terminar o movimento no vaso sobre a mesa. O vaso é a imagem da morte, da secura, de um mundo em decomposição. Carolina foi posta de parte e integrada no mesmo processo de deterioração. Foi-lhe negado o contacto com outras crianças. Só conhece os seus progenitores. Sobra-lhe a imaginação, como quando observa as sombras projectadas das suas mãos em moções de sucessivas formas. Ouvimos o pai questioná-la sobre onde esteve, se trouxe água, se foi à fonte — e mandá-la tirar a roupa molhada. A luz que projecta as sombras sobre um solo de hastes secas e ramos partidos vai perdendo intensidade até as sombras desaparecerem. Mais uma vez, o som inscreve um evento futuro na cena, dobrando e desdobrando o tempo. Sob o comportamento autoritário e opressivo do pai, encontramos uma oposição idealista entre a pureza da natureza, por um lado, e a decadência da civilização, por outro. Carolina entra em casa com o cântaro cheio e fixa o casaco do pai, pendurado junto à entrada. Um medo mudo perpassa por estes momentos. A violência do pai é sugerida, não só pelo olhar fixo dela, mas também pela sombra do pai que avança sobre ela mais tarde. No entanto, as palavras que ouvimos este homem dizer sobre a cidade, na parte final do plano-sequência, entre a cozinha e a mesa, mostram que também ele tinha medo: “Hoje não quero falar. É inútil pensar em voltar. Perigoso. [pausa] Fala-se de um fim do mundo. As pessoas vivem sobre o constante medo da morte. [pausa] Receio que matar seja uma forma de viver. Receio ter de fugir. Receio ser seguido e que vos levem de mim.” Estas frases são a resposta dele a uma simples pergunta de Rosa: “O que trouxeste?” Ele trouxe o medo. A casa é povoada por espectros que cercam a solidão da menina. O filme dá forma à ausência do pai e da mãe, reduzindo a presença deles às suas vozes. Ouvimo-los sem saber se estas frases vêm do passado distante ou recente, ecoando ainda naquelas paredes como se fossem assombrações. Mas há contrapontos a estas aparições dos mortos. Na cena seguinte ao plano-sequência, Carolina rega uma planta no celeiro, admirando a vida dos seus ramos e das suas folhas e passando a mão por elas como se este organismo vegetal fosse um animal doméstico. É a mesma planta que ela arranca pela raiz antes de partir. Esta pequena presença da vida — uma presença concreta que brota
apesar de tudo, talvez
contra tudo — contrasta com a grande presença da morte da cena anterior. Pouco depois, emergem cânticos religiosos do fundo ruidoso emitido pelo pequeno rádio, que assim ganham uma textura densa e irreal. A figura da santa está em primeiro plano, Carolina em segundo, diante do altar, e os tachos da cozinha em terceiro. Esta cadeia visual liga o papel alienante que a religião pode desempenhar à opressão doméstica feminina. Carolina encontra-se no meio dessa teia e quebra corajosamente um efeito mágico ao mexer no aparelho e pegar na figura para a abanar. Depois esconde-se ao lado da janela, ainda receosa. A polícia já ronda a casa à sua procura.
Carolina dá o seu último passeio, transpondo pela primeira vez os confins do bosque. O vento forte curva a vegetação. Ela passa pelo corpo morto do pai, deitado sobre pedras ensanguentadas, e avança. Passa por colinas recortadas, por ladeiras despovoadas de árvores, por zonas onde o céu aparece agora destapado. A paisagem muda, a luz altera-se, a floresta é interrompida para a passagem da rede de eletricidade. A natureza e a civilização entrelaçam-se. Eis quando surge a auto-estrada. Ela assusta-se com o movimento rápido dos automóveis. A sua inquietação permanente endurece-lhe o corpo e paralisa-lhe a acção. O filme mostra isto através da paragem da imagem visual quando ela olha, simultaneamente curiosa e assustada, mantendo a sensação de movimento através do som do vento cortado pelos automóveis velozes e do cricrilar dos dos grilos que se continua a ouvir. Vê-mo-la depois junto à água, primeiro ao longe, depois de perto, a atirar pedras à água. Regressa a imagem do céu, com uma perspectiva diferente da inicial, agora de baixo para cima, mas acompanhada do mesmo som da corrente de água e da mesma música. Carolina foi além do que via, tentando descobrir, finalmente, para onde o corre o rio. O rompimento das fronteiras do lugar onde ela vivia é encenado como um regresso às origens que desconhecia. No fim, a Covilhã, a cidade de que Carolina, Rosa, e o pai falam ao longo do filme, aparece de forma contrastante. Ao percurso pelas rodovias desta cidade são juntados sons aquáticos borbulhantes, como que captando alguém a respirar debaixo de água. A última vez que vemos Carolina ela está deitada no banco de um transporte público, a espreitar de debaixo de uma manta que a tapa. Quem sabe se não vai a caminho da escola. Os sons ainda se ouvem durante alguns segundos e depois faz-se silêncio. Este momento derradeiro condensa diversas imagens. A água forte pela sua corrente e frágil pela sua maleabilidade são o espelho da força e da fragilidade de Carolina e da sua mãe.
[19.10.2016]